quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Da soberania que dispõe da vida e morte

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O mais alto grau de ostentabilidade de um poder dominante/soberano é o direito de vida e morte. Sem dúvida, ela deriva formalmente da velha pátria potestas, que concedia ao pai de família romano o direito de dispor da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha “dado”.
Foucault, bem questionaria, de que modo um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar e multiplicar a vida?
Em palco de Estado Moderno, já não se admite dispor sobre a vida e morte, em termos absolutos e incondicionais, mas sim, condicionado à defesa do Estado e de sua soberania, criando com isso, não um direito de aplicar a morte, mas sim de deixar viver à "causar" a morte - o que chamariamos de pena de vida.

Contudo, gostaria de trazer um conto de Machado de Assis, que motiva (analogicamente) uma reflexão sobre o escândalo, o fim e a contradição que seria a institucionalização da pena capital.

Conto Alexandrino, de Machado de Assis


Capítulo I - no mar

- O QUE, meu caro Stroibus! Não, impossível. Nunca jamais ninguém acreditará que o sangue de rato, dado a beber a um homem, possa fazer do homem um ratoneiro.
- Em primeiro lugar, Pítias, tu omites uma condição: - é que o rato deve expirar debaixo do escalpelo, para que o sangue traga o seu princípio. Essa condição é essencial. Em segundo lugar, uma vez que me apontas o exemplo do rato, fica sabendo que já fiz com ele uma experiência, e cheguei a produzir um ladrão...
- Ladrão autêntico?
- Levou-me o manto, ao cabo de trinta dias, mas deixou-me a maior alegria do mundo: - a realidade da minha doutrina. Que perdi eu? um pouco de tecido grosso; e que lucrou o universo? a verdade imortal. Sim, meu caro Pítias; esta é a eterna verdade. Os elementos constitutivos do ratoneiro estão no sangue do rato, os do paciente no boi, os do arrojado na águia...
- Os do sábio na coruja, interrompeu Pítias sorrindo.
- Não; a coruja é apenas um emblema; mas a aranha, se pudéssemos transferi-la a um homem, daria a esse homem os rudimentos da geometria e o sentimento musical. Com um bando de cegonhas, andorinhas ou grous, faço-te de um caseiro um viajeiro. O princípio da fidelidade conjugal está no sangue da rola, o da enfatuação no dos pavões... Em suma, os deuses puseram nos bichos da terra, da água e do ar a essência de todos os sentimentos e capacidades humanas. Os animais são as letras soltas do alfabeto; o homem é a sintaxe. Esta é a minha filosofia recente; esta é a que vou divulgar na corte do grande Ptolomeu.
Pítias sacudiu a cabeça, e fixou os olhos no mar. O navio singrava, em direitura a Alexandria, com essa carga preciosa de dous filósofos, que iam levar àquele regaço do saber os frutos da razão esclarecida. Eram amigos, viúvos e qüinquagenários. Cultivavam especialmente a metafísica, mas conheciam a física, a química, a medicina e a música; um deles, Stroibus, chegara a ser excelente anatomista, tendo lido muitas vezes os tratados do mestre Herófilo. Chipre era a pátria de ambos; mas, tão certo é que ninguém é profeta em sua terra, Chipre não dava o merecido respeito aos dous filósofos. Ao contrário, desdenhava-os; os garotos tocavam ao extremo de rir deles. Não foi esse, entretanto, o motivo que os levou a deixar a pátria. Um dia, Pítias, voltando de uma viagem, propôs ao amigo irem para Alexandria, onde as artes e as ciências eram grandemente honradas. Stroibus aderiu, e embarcaram. Só agora, depois de embarcados, é que o inventor da nova doutrina expô-la ao amigo, com todas as suas recentes cogitações e experiências.
- Está feito, disse Pítias, levantando a cabeça, não afirmo nem nego nada. Vou estudar a doutrina, e se a achar verdadeira, proponho-me a desenvolvê-la e divulgá-la.
- Viva Hélios! exclamou Stroibus. Posso contar que és meu discípulo.


Capítulo II - Experiência

OS GAROTOS alexandrinos não trataram os dous sábios com o escárnio dos garotos cipriotas. A terra era grave como a íbis pousada numa só pata, pensativa como a esfinge, circunspecta como as múmias, dura como as pirâmides; não tinha tempo nem maneira de rir. Cidade e corte, que desde muito tinham notícia dos nossos dous amigos, fizeram-lhes um recebimento régio, mostraram conhecer os seus escritos, discutiram as suas idéias, mandaram-lhes muitos presentes, papiros, crocodilos, zebras, púrpuras. Eles, porém, recusaram tudo, com simplicidade, dizendo que a filosofia bastava ao filósofo, e que o supérfluo era um dissolvente. Tão nobre resposta encheu de admiração tanto aos sábios como aos principais e à mesma plebe. E aliás, diziam os mais sagazes, que outra cousa se podia esperar de dous homens tão sublimes, que em seus magníficos tratados...
- Temos cousa melhor do que esses tratados, interrompia Stroibus. Trago uma doutrina, que, em pouco, vai dominar o universo; cuido nada menos que em reconstituir os homens e os Estados, distribuindo os talentos e as virtudes.
- Não é esse o ofício dos deuses? objetava um.
- Eu violei o segredo dos deuses, acudia Stroibus. O homem é a sintaxe da natureza, eu descobri as leis da gramática divina...
- Explica-te.
- Mais tarde; deixa-me experimentar primeiro. Quando a minha doutrina estiver completa, divulgá-la-ei como a maior riqueza que os homens jamais poderão receber de um homem.
Imaginem a expectação pública e a curiosidade dos outros filósofos, embora incrédulos de que a verdade recente viesse aposentar as que eles mesmos possuíam. Entretanto, esperavam todos. Os dous hóspedes eram apontados na rua até pelas crianças. Um filho meditava trocar a avareza do pai, um pai a prodigalidade do filho, uma dama a frieza de um varão, um varão os desvarios de uma dama, porque o Egito, desde os Faraós até aos Lágides, era a terra de Putifar, da mulher de Putifar, da capa de José, e do resto. Stroibus tornou-se a esperança da cidade e do mundo.
Pítias, tendo estudado a doutrina, foi ter com Stroibus, e disse-lhe:
- Metafisicamente, a tua doutrina é um despropósito; mas estou pronto a admitir uma experiência, contando que seja decisiva. Para isto, meu caro Stroibus, há só um meio. Tu e eu, tanto pelo cultivo de razão como pela rigidez do caráter, somos o que há mais oposto ao vício do furto. Pois bem, se conseguires incutir-nos esse vício, não será preciso mais; se não conseguires nada (e podes crê-lo, porque é um absurdo) recuarás de semelhante doutrina, e tornarás às nossas velhas meditações.
Stroibus aceitou a proposta.
- O meu sacrifício é o mais penoso, disse ele, pois estou certo do resultado; mas que não merece a verdade? A verdade é imortal; o homem é um breve momento...
Os ratos egípcios, se pudessem saber de um tal acordo, teriam imitado os primitivos hebreus, aceitando a fuga para o deserto, antes do que a nova filosofia. E podemos crer que seria um desastre. A ciência, como a guerra, tem necessidades imperiosas; e desde que a ignorância dos ratos, a sua fraqueza, a superioridade mental e física dos dois filósofos eram outras tantas vantagens na experiência que ia começar, cumpria não perder tão boa ocasião de saber se efetivamente o princípio das paixões e das virtudes humanas estava distribuído pelas várias espécies de animais, e se era possível transmiti-lo.
Stroibus engaiolava os ratos; depois, um a um, ia-os sujeitando ao ferro. Primeiro, atava uma tira de pano no focinho do paciente; em seguida, os pés, finalmente, cingia com um cordel as pernas e o pescoço do animal à tábua da operação. Isto feito, dava o primeiro talho no peito, com vagar, e com vagar ia enterrando o ferro até tocar o coração, porque era opinião dele que a morte instantânea corrompia o sangue e retirava-lhe o princípio. Hábil anatomista, operava com uma firmeza digna do propósito científico. Outro, menos destro, interromperia muita vez a tarefa, porque as contorções de dor e de agonia tornavam difícil o meneio do escalpelo; mas essa era justamente a superioridade de Stroibus: tinha o pulso magistral e prático.
Ao lado dele, Pítias aparava o sangue e ajudava a obra, já contendo os movimentos convulsivos do paciente, já espiando-lhe nos olhos o progresso da agonia. As observações que ambos faziam eram notadas em folhas de papiro; e assim ganhava a ciência de duas maneiras. Às vezes, por divergência de apreciação, eram obrigados a escalpelar maior número de ratos do que o necessário; mas não perdiam com isso, porque o sangue dos excedentes era conservado e ingerido depois. Um só desses casos mostrará a consciência com que eles procediam. Pítias observara que a retina do rato agonizante mudava de cor até chegar ao azul claro, ao passo que a observação de Stroibus dava a cor de canela como o tom final da morte. Estavam na última operação do dia; mas o ponto valia a pena, e, não obstante o cansaço, fizeram sucessivamente dezenove experiências sem resultado definitivo; Pítias insistia pela cor azul, e Stroibus pela cor de canela. O vigésimo rato esteve prestes a pô-los de acordo, mas Stroibus advertiu, com muita sagacidade, que a sua posição era agora diferente, retificou-a e escalpelaram mais vinte e cinco. Destes, o primeiro ainda os deixou em dúvida; mas os outros vinte e quatro provaram-lhes que a cor final não era canela nem azul, mas um lírio roxo, tirando a claro.
A descrição exagerada das experimentações deu rebate à porção sentimental da cidade, e excitou a loqüela de alguns sofistas; mas o grave Stroibus (com brandura, para não agravar uma disposição própria da alma humana) respondeu que a verdade valia todos os ratos do universo, e não só os ratos, como os pavões, as cabras, os cães, os rouxinóis, etc.; que, em relação aos ratos, além de ganhar a ciência, ganhava a cidade, vendo diminuída a praga de um animal tão daninho; e, se a mesma consideração não se dava com outros animais, como, por exemplo, as rolas e os cães, que eles iam escalpelar daí a tempos, nem por isso os direitos da verdade eram menos imprescritíveis. A natureza não há de ser só a mesa de jantar, concluía em forma de aforismo, mas também a mesa de ciência.
E continuavam a extrair o sangue e a bebê-lo. Não o bebiam puro, mas diluído em um cozimento de cinamomo, suco de acácia e bálsamo, que lhe tirava todo o sabor primitivo. As doses eram diárias e diminutas; tinham, portanto, de aguardar um longo prazo antes de produzido o efeito. Pítias, impaciente e incrédulo, mofava do amigo.
- Então? nada?
- Espera, dizia o outro, espera. Não se incute um vício como se cose um par de sandálias.

Capítulo III - Vitória

ENFIM, VENCEU STROIBUS! A experiência provou a doutrina. E Pítias foi o primeiro que deu mostras da realidade do efeito, atribuindo-se umas três idéias ouvidas ao próprio Stroibus; este, em compensação, furtou-lhe quatro comparações e uma teoria dos ventos. Nada mais científico do que essas estréias. As idéias alheias, por isso mesmo que não foram compradas na esquina, trazem um certo ar comum; e é muito natural começar por elas antes de passar aos livros emprestados, às galinhas, aos papéis falsos, às províncias, etc. A própria denominação de plágio é um indício de que os homens compreendem a dificuldade de confundir esse embrião da ladroeira com a ladroeira formal.
Duro é dizê-lo; mas a verdade é que eles deitaram ao Nilo a bagagem metafísica, e dentro de pouco estavam larápios acabados. Concertavam-se de véspera, e iam aos mantos, aos bronzes, às ânforas de vinho, às mercadorias do porto, às boas dracmas. Como furtassem sem estrépito, ninguém dava por eles; mas, ainda mesmo que os suspeitassem, como fazê-lo crer aos outros? Já então Ptolomeu coligira na biblioteca muitas riquezas e raridades; e, porque conviesse ordená-las, designou para isso cinco gramáticos e cinco filósofos, entre estes os nossos dous amigos. Estes últimos trabalharam com singular ardor, sendo os primeiros que entravam e os últimos que saíam, e ficando ali muitas noites, ao clarão da lâmpada, decifrando, coligindo, classificando. Ptolomeu, entusiasmado, meditava para eles os mais altos destinos.
Ao cabo de algum tempo, começaram a notar-se faltas graves: - um exemplar de Homero, três rolos de manuscritos persas, dois de samaritanos, uma soberba coleção de cartas originais de Alexandre, cópias de leis atenienses, o 2º e o 3º livro da República de Platão, etc., etc. A autoridade pôs-se à espreita; mas a esperteza do rato, transferida a um organismo superior, era naturalmente maior, e os dois ilustres gatunos zombavam de espias e guardas. Chegaram ao ponto de estabelecer este preceito filosófico de não sair dali com as mãos vazias; traziam sempre alguma cousa, uma fábula, quando menos. Enfim, estando a sair um navio para Chipre, pediram licença a Ptolomeu, com promessa de voltar, coseram os livros dentro de couros de hipopótamo, puseram-lhe rótulos falsos, e trataram de fugir. Mas a inveja de outros filósofos não dormia; deu rebate às suspeitas dos magistrados, e descobriu-se o roubo. Stroibus e Pítias foram tidos por aventureiros, mascarados com os nomes daqueles dous varões ilustres; Ptolomeu entregou-os à justiça com ordem de os passar logo ao carrasco. Foi então que interveio Herófilo, inventor da anatomia.

Capítulo IV - Plus Ultra!

- SENHOR, disse ele a Ptolomeu, tenho-me limitado até agora a escalpelar cadáveres. Mas o cadáver dá-me a estrutura, não me dá a vida; dá-me os órgãos, não me dá as funções. Eu preciso das funções e da vida.
- Que me dizes? redargüiu Ptolomeu. Queres estripar os ratos de Stroibus?
- Não, senhor; não quero estripar os ratos.
- Os cães? os gansos? as lebres?
- Nada; peço alguns homens vivos.
- Vivos? não é possível...
- Vou demonstrar que não só é possível, mas até legítimo e necessário. As prisões egípcias estão cheias de criminosos, e os criminosos ocupam, na escala humana, um grau muito inferior. Já não são cidadãos, nem mesmo se podem dizer homens, porque a razão e a virtude, que são os dous principais característicos humanos, eles os perderam, infringindo a lei e a moral. Além disso, uma vez que têm de expiar com a morte os seus crimes, não é justo que prestem algum serviço à verdade e à ciência? A verdade é imortal; ela vale não só todos os ratos, como todos os delinqüentes do universo.
Ptolomeu achou o raciocínio exato, e ordenou que os criminosos fossem entregues a Herófilo e seus discípulos. O grande anatomista agradeceu tão insigne obséquio, e começou a escalpelar os réus. Grande foi o assombro do povo; mas, salvo alguns pedidos verbais, não houve nenhuma manifestação contra a medida. Herófilo repetia o que dissera a Ptolomeu, acrescentando que a sujeição dos réus à experiência anatômica era até um modo indireto de servir à moral, visto que o terror do escalpelo impediria a prática de muitos crimes.
Nenhum dos criminosos, ao deixar a prisão, suspeitava o destino científico que o esperava. Saíam um por um; às vezes dous a dous, ou três a três. Muitos deles, estendidos e atados à mesa da operação, não chegavam a desconfiar nada; imaginavam que era um novo gênero de execução sumária. Só quando os anatomistas definiam o objeto do estudo do dia, alçavam os ferros e davam os primeiros talhos, é que os desgraçados adquiriam a consciência da situação. Os que se lembravam de ter visto as experiências dos ratos, padeciam em dobro, porque a imaginação juntava à dor presente o espetáculo passado.
Para conciliar os interesses da ciência com os impulsos da piedade, os réus não eram escalpelados à vista uns dos outros, mas sucessivamente. Quando vinham aos dois ou aos três, não ficavam em lugar donde os que esperavam pudessem ouvir os gritos do paciente, embora os gritos fossem muitas vezes abafados por meio de aparelhos; mas se eram abafados, não eram suprimidos, e em certos casos, o próprio objeto da experiência exigia que a emissão da voz fosse franca. Às vezes as operações eram simultâneas; mas então faziam-se em lugares distanciados.
Tinham sido escalpelados cerca de cinqüenta réus, quando chegou a vez de Stroibus e Pítias. Vieram buscá-los; eles supuseram que era para a morte judiciária, e encomendaram-se aos deuses. De caminho, furtaram uns figos, e explicaram o caso alegando que era um impulso da fome; adiante, porém, subtraíram uma flauta, e essa outra ação não a puderam explicar satisfatoriamente. Todavia, a astúcia do larápio é infinita, e Stroibus, para justificar a ação, tentou extrair algumas notas do instrumento, enchendo de compaixão as pessoas que os viam passar, e não ignoravam a sorte que iam ter. A notícia desses dous novos delitos foi narrada por Herófilo, e abalou a todos os seus discípulos.
- Realmente, disse o mestre, é um caso extraordinário, um caso lindíssimo. Antes do principal, examinemos aqui o outro ponto...
O ponto era saber se o nervo do latrocínio residia na palma da mão ou na extremidade dos dedos; problema esse sugerido por um dos discípulos. Stroibus foi o primeiro sujeito à operação. Compreendeu tudo, desde que entrou na sala; e, como a natureza humana tem uma parte ínfima, pediu-lhes humildemente que poupassem a vida a um filósofo. Mas Herófilo, com um grande poder de dialética, disse-lhe mais ou menos isto: - Ou és um aventureiro ou o verdadeiro Stroibus; no primeiro caso, tens aqui o único meio para resgatar o crime de iludir a um príncipe esclarecido, presta-te ao escalpelo; no segundo caso, não deves ignorar que a obrigação do filósofo é servir à filosofia, e que o corpo é nada em comparação com o entendimento.
Dito isto, começaram pela experiência das mãos, que produziu ótimos resultados, coligidos em livros, que se perderam com a queda dos Ptolomeus. Também as mãos de Pítias foram rasgadas e minuciosamente examinadas. Os infelizes berravam, choravam, suplicavam; mas Herófilo dizia-lhes pacificamente que a obrigação do filósofo era servir à filosofia, e que para os fins da ciência, eles valiam ainda mais que os ratos, pois era melhor concluir do homem para o homem, e não do rato para o homem. E continuou a rasgá-los fibra por fibra, durante oito dias. No terceiro dia arrancaram-lhes os olhos, para desmentir praticamente uma teoria sobre a conformação interior do órgão. Não falo da extração do estômago de ambos, por se tratar de problemas relativamente secundários, e em todo caso estudados e resolvidos em cinco ou seis indivíduos escalpelados antes deles.
Diziam os alexandrinos que os ratos celebraram esse caso aflitivo e doloroso com danças e festas, a que convidaram alguns cães, rolas, pavões e outros animais ameaçados de igual destino, e outrossim, que nenhum dos convidados aceitou o convite, por sugestão de um cachorro, que lhes disse melancolicamente: - "Século virá em que a mesma cousa nos aconteça". Ao que retorquiu um rato: "Mas até lá, riamos!"





sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

O DIREITO POR SER DITO ou DIREITO DE DIZER O DIREITO

Segue publicações do Grupo de Pesquisa em Direito Humanos...

Como dizer o direito sabendo o que se diz sem a necessidade de recorrer a alguém que é legitimado a dizê-lo?Pode-se arriscar a afirmação de que nessa indagação repousa um problema inquietante.

O direito é usado, mastigado por quem tem legitimidade para dizê-lo, e engolido, às vezes causando indigestão, por aqueles que recebem os veredictos sem compreendê-los. Cuidar dos outros, tutelar os outros, talvez aí uma missão jurídico-cristã que possa ser repensada e enfraquecida. O direito necessita ser dito fora dos tribunais e dos encontros travados por um pequeno grupo de falantes da mesma língua. O direito precisa ser tradição, linguajar quotidiano, para deixar de ser sempre comando de uma voz superior que não se compreende, mas que deve ser obedecida. Para além da tarefa abstrata de um legislativo distante da realidade social, o jogo da lei pode ser observado nos estratos sociais que o produzem independentemente da inércia estatal. Um direito local e embasado no senso comum bem poderia suplantar a norma generalizante que tenta abarcar todos em uma única identidade.

O que dizer do direito?

Talvez prudente seja pensar que o direito não precisa de “clientes” para usá-lo em momento de necessidade, mas urge acima de tudo que se abra espaço para pensadores do direito ainda que não letrados. Eis dimensão ética que se pode inserir nas discussões e práticas jurídicas.

Confuso? Não mais que o juridiquês que para muitos tem condições de pouco, ou nada, dizer.

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Por Sócrates Fusinato - coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito Humanos e títular das disciplinas de Filosofia e Sociologia do Curso de Direito da Universidade do Contestado - Campus Caçador.


domingo, 30 de novembro de 2008

Estado de Exceção - Parte Final

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Ligar a vida ao direito, e abandonar a vida a ele...

Se é verdade que a articulação entre vida e direito, produzida pelo estado de exceção é eficaz, mas fictícia, não se pode, porém, extrair disso a consequência de que, além ou aquém dos dispositivos jurídicos, se abra em algum lugar um acesso imediato áquilo de que representam fratura e, ao memso tempo, a impossível recomposição. Não existem, primeiro, a vida como dado biológico natural e a anomia - ausência de lei, como estado de natureza e, depois sua implicação no direito por meio do estado de exceção. Ao contrário, a própria possibilidade de distinguir entre vida e direito, anomia e nomos concide com a articulação na máquina biopolítica. A vida pura e simples é um produto da máquina e não algo que pré-existe a ela, assim como o direito não tem nenhum fundamento na natureza ou no espírito divino.

Vida e direito, anomia[1] e monos[2], auctoritas e potestas[3] resultam da fratura de alguma coisa a que não temos outro acesso que não por meio da ficção de sua articulação e do paciente trabalho que, desmascarando tal ficção, separa o que tinha pretendido unir. Mas o desencanto não resistiu o encantado a seu estado original: segundo o princípio de que a pureza nunca está na origem, ele lhe dá somente a possibilidade de acender a uma nova condição.

Mostra o direito em sua não-relação com a vida e a vida em sua não-relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reinvindicava para si o nome de política. A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se a si mesma, em casos, como poder constituinte, quando não se reduziu simplesmente a poder de negociar com o direito. Ao contrário, política é aquela ação que corta o nexo entre violencia e direito. E somente apartir do espaço que assim se abre, é que será possível colocar a questão a respeito de um eventual uso do direito após a desativação do dispositivo que, no estado de exceção, o ligava à vida. Teremos então, diante de nós, um direito puro, no sentido em que Benjamin fala de uma língua "pura" e de uma "pura" violência. A uma palavra não coercitiva, que não comanda e não proíbe nada, mas diz apenas ela mesma, corresponderia uma ação como puro meio que mostra só a si mesma, sem relação com o objetivo. E, entre as duas, não um estado original perdido, mas somente o uso e a práxis humana que os poderes do direito e do mito haviam procurado capturar no estado de exceção.[4]

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[1] Ausência de lei.
[2] Do grego: μονογενης [monogenês] (Adjetivo). De: μονος [monos] "um", "único", "só.
[3] Ver " Estado de Exceção - Parte I"
[4] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Estado de Exceção - Parte II

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Dando continuidade ao raciocínio de Agamben, o que a arca do poder contém em seu centro é o estado de exceção – mas esse é essencialmente um espaço vazio, onde uma ação humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida.
Isso não significa que a máquina, com seu centro vazio, não seja eficaz; ao contrário, o que se procura mostrar é, justamente, que ela continuou a funcionar quase sem interrupção a partir da I Guerra Mundial, por meio do nazismo/fascismo, até nosso dias.
O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito.
Não se trata, naturalmente, de remeter o estado de exceção a seus limites temporal e espacialmente definidos para reafirmar o primato de uma norma e de direito que, em última instancia, têm nele próprio fundamento. O retorno do estado de exceção efetivo em que vivemos ao estado de direito não é possível, pois o que está em questão agora são os próprios conceitos de “estado” e de “direito”. Mas, se é possível tentar deter a máquina, mostrar sua ficção central, é porque, entre violência e direito, entre vida e norma, não existe nenhuma articulação substancial. Ao lado do movimento que busca, a todo custo, mente-los em relação, há um contramovimento que, operando em sentido inverso no direito e na vida, tenta, a cada vez, separar o que foi artificial e violentamente ligado.
No campo e tensões de nossa cultura, agem, portanto, duas forças opostas: uma que institui e que põe e outra que desativa e depõe. O estado de exceção constitui o ponto da maior tensão dessa força e, ao mesmo tempo, aquele que, coincidindo com a regra, ameaça hoje torna-la indiscerníveis. Viver sob o estado de exceção significa fazer a experiência dessas duas possibilidades e entretanto, separado a cada vez duas forças, tentar, incessantemente, interromper o funcionamento da máquina que está levando o Ocidente para a guerra civil mundial. [1]

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[1] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Estado de Exceção - Parte I

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Ligar a vida ao direito, e abandonar a vida a ele.
Disso trata a proposta do estado do exceção, onde a lume dos aspectos contemporâneos - o Estado de Direito, afasta-se da vida, uma vez que consta entre a ordem jurídica e o estar vivente, disparamentos em uma distância impar.
"O estado de exceção torna-se a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se em uma máquina letal". Disso resulta que o Estado Democrático de Direito (assim positivado constitucionalmente) acaba por excludente masssificador de desvalidos da norma, à sombra da não tutela jurídica-política, e sim, da exceção. Sendo ainda, na afirmação do modelo estatal contemporânea, a articulação do interesse soberano subjacente, determinante de nulação de parcelas sociais - nulidade de quem é anulado.

Desta feita, trago trecho do pensador italiano, Giorgio Agamben:

"O sistema jurídico do Ocidente apresenta-se como uma estrutura dupla, fomada por dois elementos heterogêneos e, no entando, coordenados: um elemento normativo e jurídico em sentido estrito - que podemos inscrever aqui, por comodidade, sob a rubrica de potestas - e um elemento anômico e metajuríddico - que podemos designar pelo nome de auctoritas.
O elemento normativo necessita do elemento anômico para poder ser aplicado, mas, por outro lado, a auctoritas só pode se afirmar numa relação de validação ou de suspensão da potestas. Enquanto resulta da dialética entre esses dois elementos em certa medida antagônicos, mas funcionalmente ligados, a antiga morada do direito é frágil e, em suma tensão para manter a própria ordem, já está sempre num processo de ruína e decomposição.
O estado de exceção é o dispositivo que deve, em última instância, articular e manter juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um liminar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas. Ele se baseia na ficção essencial pela qual a anomia - sob a forma da auctoritas, da lei viva ou da força de lei - ainda está em relação com a ordem jurídica e o poder de suspender a norma está em contato direto com a vida. Enquanto os dois elementos permanecem ligados, mas conceitualmente, temporalmente e subjetivamente distintos - como na Roma republica, na contraposição entre Senado e povo, ou na Europa mediavel, na contraposição entre podes espiritual e poder temporal - , sua dialética - embora fundada sobre uma ficção - pode, entretanto, funcionar de algum modo. Mas, quando tendem a coincidir numa só pessoa, quando o estado de exceção em que eles se ligam e se indeterminam torna-se a regra, então o sistema jurídico-político transforma-se em uma máquina letal." [1]


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[1] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

O Paradigma da Democracia Econômica

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Resenha: DOWBOR, Ladislau.Democracia Econômica. Alternativas de Gestão Social. Petrópolis , Vozes, 2008.



Por Paulo Marques¹

Foi no período áureo do neoliberalismo (década de 1990) que o discurso hegemônico decretou que economia devia manter-se completamente alijada da política e por conseqüência da interferência do Estado. Uma falácia que serviu apenas de discurso ideológico, na medida em que o neoliberalismo é uma política e necessita de um Estado que possibilite a garantia das estruturas para a sua implantação, inclusive o financiamento público como no caso das privatizações e desregulamentações. Tanto que a lógica sempre foi Estado mínimo para a sociedade e Estado máximo (via financiamento público) para os capitalistas e seus negócios.
A falácia desse discurso da “mão invisível” caiu de forma explícita frente a crise do sistema, considerada a maior desde 1929. . Esse fato tem sido responsável por re-colocar a questão do sentido da economia e o tema sempre presente do desenvolvimento para a sociedade, no presente e no futuro.
Qual o significado da Economia hoje? e de que desenvolvimento estamos falando neste contexto de transformações estruturais do capitalismo? Essas duas questões compõe o último trabalho do economista e professor da PUC de São Paulo, Ladislaw Dowbor. Com o título Democracia Econômica, Alternativas de Gestão Social, Dowbor apresenta um ensaio que busca, a partir do resgate do pensamento cada vez mais atual de Celso Furtado, para apresentar tanto um diagnóstico claro e objetivo do capitalismo atual, mas sobretudo, um conjunto de alternativas e novas teorias que apresentam elementos para construção de um novo paradigma econômico.Segundo Dowbor essa construção passa necessariamente por um processo de constituição de uma democracia econômica .
O livro inicia abordando o significado a economia enquanto ciência e o seu sentido para a sociedade. Na esteira do pensamento de Celso Furtado, Dowbor destaca a necessidade da economia estar voltada para resultados, o que Furtado identificava como os fins substantivos, da economia, ou seja:
(...) a economia não é uma ciência que deve apenas fornecer instrumentos mais sofisticados de análise de conjuntura para orientar especuladores: tem de voltar a se concentrar nos resultados- os “ fins substantivos”- que queremos construir, em particular de uma sociedade viável não só em termos econômicos, como sociais e ambientais; o “ norte” definido por estes objetivos deve, por sua vez, re-fundar a contabilidade econômica, a forma como calculamos os resultados; é para esses resultados, por sua vez, que devem voltar a ser canalizados os recursos gerados pelas poupanças das populações proprietárias destas poupanças, mas cuja utilização lhes foi expropriada.
Os fins substantivos também compõe a imbricação da economia com o tema do desenvolvimento a partir dos conceitos de Celso Furtado para quem “impõe-se formular a política de desenvolvimento com base numa explicitação dos fins substantivos que almejamos alcançar , e não com base na lógica dos meios imposta pelo processo de acumulação comandado pelas empresas transnacionais”.
A partir dessas premissas sobre o sentido da economia, Dowbor aborda as transformações nos paradigmas da economia e do desenvolvimento, ou seja, no atual paradigma, “o deslocamento sísmico mais importante na teoria econômica se refere ao gradual esgotamento da competição como principal instrumento de regulação econômica, além de principal conceito na análise da motivação, da força propulsora que estaria por trás das nossas decisões econômicas”.
Segundo Dowbor vivemos um esgotamento do paradigma segundo qual:
“Se nos esforçarmos todos o máximo possível para obter o máximo de vantagem pessoal na corrida econômica, no conjunto, tudo vai avançar mais rápido. Misturando a visão de Adam Smith sobre a soma de vantagens individuais , de Jeremy Bentham e Stuart Mill sobre o utilitarismo, e de Charles Darwin sobre a sobrevivência do mais apto, geramos um tipo de guerra de todos contra todos, que está se esgotando como mecanismo regulador , e que está inclusive nos levando a impasses planetários cada vez mais inquietantes ( ...)
Os motivos pelos quais desde já é possível identificar o esgotamento desta lógica é sua irracionalidade, no qual a competição não responde aos desafios do desenvolvimento abrindo assim espaço para outro paradigma. Nesse sentido afirma Dowbor se desenvolve o paradigma da colaboração:
“O que está despontando com cada vez mais força é que somos condenados, se quisermos sobreviver, a desenvolver formas inteligentes de articulação entre os diversos objetivos econômicos, sociais, ambientais e culturais e, consequentemente , formas inteligentes de colaboração entre os diversos atores que participam da construção social destes objetivos. O deslocamento sísmico consiste na gradual substituição do paradigma da competição pelo paradigma da colaboração (...)
Entretanto, o paradigma da colaboração não é uma idéia abstrata que surgirá da boa vontade de filantropos, isto porque como afirma Dowbor, o mundo naturalmente, não é um mar de rosas, e tende a predominar a esperteza burra de quem vê nos processos colaborativos uma oportunidade de aumentar as suas próprias vantagens: a colaboração, para essa gente, consiste em fazer com que os outros colaborem para os seus lucros.
É nesse sentido que Dowbor demonstra que a colaboração também faz parte atualmente das estratégias das classes dominantes, ou seja, no Brasil os banqueiros colaboram intensamente na manutenção de um sistema de restrição ao crédito, de juros elevados e de tarifas caríssimas, o que lhes permite drenar grande parte da riqueza produzida pela sociedade, sem precisar contribuir para produzi-la. Da mesma forma afirma Dowbor, os grandes grupos de mídia colaboram com as grandes empresas que compram espaços publicitários, e adaptam o conteúdo da informação aos interesses empresariais.
Neste quadro qual a saída para que as classes exploradas também assimilem o paradigma da colaboração? Para Dowbor este é um processo que necessariamente envolve o resgate do planejamento, mecanismos de gestão participativa local que ele denomina de democracia econômica. Segundo Dowbor , “a democracia econômica constitui um complemento necessário que pode tanto racionalizar tanto a política como a economia”
Para Dowbor o paradigma da colaboração tem se manifestado de forma concreta nas organizações da sociedade civil, que engloba um conjunto de experiências que não se definem pelos paradigmas tradicionais da busca do lucro ou da autoridade estatal. Essas experiências em grande parte não são reconhecidas pela lógica do mercado, segundo Dowbor, a lógica da Empresa privada é ganhar dinheiro e sua contribuição é avaliada pelo valor agregado, já nas experiências organizadas pela sociedade as iniciativas nascem do movimento de grupos de pessoas preocupadas com um problemas social que não encontra soluções aparentes nem no Estado, nem na empresa, e que se organizam para dar uma resposta. Podemos identificar nessa descrição de Dowbor as experiências dos empreendimentos econômicos solidários, que mesmo com as diversidade, são identificadas como economia solidária.
Para Dowbor, em termos de democracia econômica, a contribuição é essencial.
“É muito mais fácil manipular indivíduos isolados, ainda que sejam milhões, do que interesses sociais organizados. À medida que os mecanismos de concorrência de mercado sãos substituídos por oligopólios, cartéis e semelhantes, com poder planetário- grande parte das maiores economias do mundo são hoje empresas, e não países, com dirigentes que ninguém elegeu – a expressão organizada dos interesses da sociedade torna-se indispensável ao funcionamento da própria economia”.
É a partir destas premissas da colaboração versus competição que Dowbor apresenta um capítulo sobre o problema da ética na economia, no qual repõe a discussão do sentido da economia e da necessidade de um novo paradigma:
(...) A economia da colaboração está baseada em pactuações, e uma pactuação que não fala dos resultados, da sustentabilidade do processo e da distribuição do produto, não teria sentido. E quando introduzimos a distribuição na definição das regras do jogo- o para quem- introduzimos igualmente o debate sobre o quê será produzido, com que impactos sociais e ambientais. Nessa visão, a ética da economia deixa de se basear na lei do mais forte, e passa a ser regulada pelo maior interesse sistêmico. Este, por sua vez, ao gerar uma sociedade mais equilibrada e ao manter um ambiente mais favorável à vida, amplia nossas opções, e reverte em maior liberdade individual(...)
(...) Em termos teóricos, trata-se de inverter o paradigma utilitarista que constitui a base ética do mainstream econômico atual. De uma visão onde o interesse de cada um resultaria na maior satisfação social possível- a soma dos egoísmos gerando, de certa maneira, o altruísmo viável-, as transformações em curso apontam para um sistema em que os processos colaborativos, de interessa social, resultem no maior potencial de realização individual, sentimento de iniciativa e liberdade de escolha. A maximização dos interesses individuais, nesse mundo onde os indivíduos já não sâo pessoas de carne e osso, mas gigantescas pessoas jurídicas, leva ao esmagamento das opções individuais. Temos de partir para a construção de condições sociais e ambientais em que o interesse individual possa efetivamente se manifestar. (...)
No capitulo sobre o conceito de Democracia Econômica, Dobor apresenta um enorme contribuição para pensarmos concretamente o mundo em que vivemos e os caminhos possíveis para a construção de novos paradigmas a partir de alguns elementos para compreensão do que seria este processo, hoje mais urgente do que nunca de democratização da economia:
A democracia econômica começa, portanto, pela ética dos resultados. Não nos adianta muito saber que dirigentes corporativos são bem intencionados, que contribuem para escolas em regiões pobres, se no conjunto o resultado é um aprofundamento das desigualdades(...) A democracia é central no processo, pois quando há formas participativas de tomadas de decisão, envolvendo, portanto, os diferentes interesses, o resultado, tende a ser mais equilibrado ( ...) A democracia econômica consiste, portanto, em inserir nos processos decisórios os diversos interesses e , particularmente, os que são passíveis de serem prejudicados ( ...)
(...)A visão de que a desigualdade planetária não está apenas ligada ao segmento distributivo do ciclo de reprodução, mas à inserção mal equilibrada das pessoas nos próprios processos produtivos é essencial. Abre espaço para o desenvolvimento local integrado, e para o sentimento de que nosso futuro depende de nós, e não de distantes reuniões transnacionais. Não basta que alguma empresa, ou uma distante burocracia, faça coisas que são para nosso bem. Temos de devolver às pessoas a possibilidade de cuidarem do próprio destino, de serem protagonistas (...)
Nos capítulos finais Dowbor põe no centro de sua síntese a questão da política como elemento fundamental do processo de transformações. Nesse sentido que Dowbor afirma que : virar as costas para a política costuma ser confortante. É mais facial dizer que a economia despreza o discurso e se concentra em realizações práticas. ( ...) Entretanto, salienta Dowbor:
(...) é bom lembrar que foram os grandes movimentos políticos, regularmente taxados como subversivos na fase inicial, que nas respectivas épocas conseguiram a abolição da escravidão, o fim do colonialismo, os direitos do assalariado, a inclusão política da mulher, contra a destruição do meio ambiente, pelo resgate da riqueza cultural das nossas vidas, contra os sistemas de especulação financeira, pelo acesso de todos a bens básicos como água, comida, educação e saúde. A democratização da economia pode bem se tornar um eixo desta construção de uma vida mais humana.”
Nesse breve resumo do ensaio do professor Dowbor é possível apontar duas questões para futuras discussões, uma de ordem econômica e outra de ordem política. Na questão econômica é a identificação que podemos fazer da enorme oportunidade que a crise capitalista abre para o questionamento prático de seus paradigmas por parte da sociedade organizada, o que Dowbor identifica como um processo já em curso em alternativas que surgem da própria sociedade civil.
E a segunda questão de ordem política é que podemos verificar que essas iniciativas de democracia econômica e até mesmo novas elaborações no campo teórico, infelizmente ainda não estão sendo acompanhadas pela esquerda brasileira, vide os programas e as pautas das últimas eleições municipais na qual as proposições da esquerda se limitaram ao paradigma dominante.
A incapacidade da esquerda brasileira de identificar com a clareza as mudanças em cursos na economia e as brechas que se abrem no sentido de construção de um novo paradigma econômico, que o livro de Dowbor demonstra de forma muito objetiva, têm constituído, no nosso ponto de vista, um grande problema para o avanço político destas alternativas.
Nesse sentido que saudamos a publicação deste pequeno livro que contém uma grande contribuição para a renovação teórica do pensamento econômico brasileiro, pois reflete uma realidade em transformação que pode avançar no sentido de concretizar um novo paradigma de economia e desenvolvimento.
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¹Paulo Marques é pesquisador, doutorando em Sociologia pela Universidad de Granada, mestre em sociologia pela UFRGS e militante da Economia Solidária (Rio Grande do Sul).
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segunda-feira, 3 de novembro de 2008

ECONOMIA SOLIDÁRIA E INCENTIVO LEGISLATIVO À GERAÇÃO DE TRABALHO A PARTIR DO ASSOCIATIVISMO - PARTE IV

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MODO DE EMPREENDIMENTO COOPERATIVO FRONTE A QUESTÃO JURÍDICA.

Para conclusão do tema, imprescindível trazer a lume algumas formas de manifestação da Economia Solidária para que se perceba a magnitude e heterogeneidade do segmento de empreendimentos solidários.
Dentre os modelos de organização da sociedade civil em prol de uma economia solidária pode-se elencar: as cooperativas populares, as associações de produtores, os grupos de geração de trabalho e renda, as empresas recuperadas de autogestão, os agricultores familiares, os fundos solidários e rotativos de crédito.
No que tange as cooperativas, modelo de empreendimento solidário de grande expressão no Brasil, de grade valia é detonar, que, com o advento do Novo Código Civil, os princípios gerais que regem esse tipo de sociedade, estão enunciados em seus artigos 1.093 a 1.096, conforme textos de lei abaixo citados:

Art. 1.093. A sociedade cooperativa reger-se-á pelo disposto no presente Capítulo, ressalvada a legislação especial.
Art. 1.094. São características da sociedade cooperativa:
I - variabilidade, ou dispensa do capital social;
II - concurso de sócios em número mínimo necessário a compor a administração da sociedade, sem limitação de número máximo;
III - limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar;
IV - intransferibilidade das quotas do capital a terceiros estranhos à sociedade, ainda que por herança;
V - quorum, para a assembléia geral funcionar e deliberar, fundado no número de sócios presentes à reunião, e não no capital social representado;
VI - direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, tenha ou não capital a sociedade, e qualquer que seja o valor de sua participação;
VII - distribuição dos resultados, proporcionalmente ao valor das operações efetuadas pelo sócio com a sociedade, podendo ser atribuído juro fixo ao capital realizado;
VIII - indivisibilidade do fundo de reserva entre os sócios, ainda que em caso de dissolução da sociedade.
Art. 1.095. Na sociedade cooperativa, a responsabilidade dos sócios pode ser limitada ou ilimitada.
§ 1o É limitada a responsabilidade na cooperativa em que o sócio responde somente pelo valor de suas quotas e pelo prejuízo verificado nas operações sociais, guardada a proporção de sua participação nas mesmas operações.
§ 2o É ilimitada a responsabilidade na cooperativa em que o sócio responde solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais.
Art. 1.096. No que a lei for omissa, aplicam-se as disposições referentes à sociedade simples, resguardadas as características estabelecidas no art. 1.094.

Em que pese a nova legislação civil vigente, ressalva-se a problemática da existência de anterior legislação atinente à matéria, Lei n. 5.764/71, que define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas. Contudo, a convivência desses dois diplomas legais sobre cooperativas, fomenta o surgimento de dificuldades na aplicação das normas jurídicas constantes, principalmente daquelas que encontram seus conteúdos contraditórios ou incompatíveis, o que acontece de fato e de direito.
Para tanto, mais urgente se faz a necessidade de regulamentações legais ao desenvolvimento da Economia Solidária, haja vista que ela possui finalidade multidimensional, isto é, envolve a dimensão social, econômica, política, ecológica e cultural. Isto porque, além da visão econômica de geração de trabalho e renda, as experiências de Economia Solidária se projetam no espaço público, no qual estão inseridas, tendo como perspectiva a construção de um ambiente socialmente justo e sustentável, baseado no associativismo, no trabalho coletivo e autogestionário.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

ECONOMIA SOLIDÁRIA E INCENTIVO LEGISLATIVO À GERAÇÃO DE TRABALHO A PARTIR DO ASSOCIATIVISMO - PARTE III


DA ORDEM ECONÔMICA E A FUNÇÃO SOCIAL DO ESTADO:

O Estado, sendo o principal agente normativo de incentivo à ordem econômica, detém grande responsabilidade em se tratando da legitimação dos processos de transformações sociais e econômicas empreendidos pela sociedade civil brasileira.
A Constituição Federal de 1988 atribui referido ônus ao Estado conforme se depreende do texto constitucional a seguir:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
(...)
§ 2º - A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

Nesse contexto, merece especial atenção o lugar ocupado pelo Estado. Este passa a ter um papel fundamental na realização de uma política de economia solidária centrada no associativismo autogestionário da sociedade civil. Isto significa que a responsabilidade do Estado centra-se não no sentido de planejar a atividade econômica, mas no sentido de criar condições para que a auto-organização livre dos produtores e consumidores possa ser efetivada.
Supera-se a idéia de Estado como burocracia administrativa em nome da idéia de Estado como espaço público, como palco de busca de soluções públicas, coletivas, que venham a reduzir a voracidade individualista em nome da satisfação de todos e de cada um. Aliás, sem que a sociedade esteja organizada de maneira autônoma, qualquer ação do Estado na perspectiva da economia solidária deporá contra ela, destruirá suas bases pelo paternalismo. Neste sentido, o Estado, antes de ser burocracia, abstração para poucos, deve ser entendido como sendo sociedade organizada com autonomia para ajudá-lo a se desenvolver em prol de todos.

Trata-se então, de fazer valer a função legislativa do Estado rumo ao incentivo deste poderoso instrumento de combate à exclusão social. Pois, a Economia Solidária apresenta alternativas viáveis para a geração de trabalho e renda, e para a satisfação das necessidades de todos, provando que é possível organizar a produção na sociedade de modo a eliminar as desigualdades materiais e difundir os valores da solidariedade humana.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

ECONOMIA SOLIDÁRIA E INCENTIVO LEGISLATIVO À GERAÇÃO DE TRABALHO A PARTIR DO ASSOCIATIVISMO - PARTE II

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HISTÓRICAMENTE...

O marco inicial da Economia Solidária se dá com a Revolução Industrial, sendo a organização reacionária dos artesãos expulsos dos mercados pelo advento da máquina a vapor. Na passagem do Séc. XVIII ao Séc. XIX, surgem as primeiras Trade Unions (Uniões de Ofícios), e as primeiras cooperativas. Logo, o cooperativismo de consumo se consolida em grande empreendimento, espalhando-se por toda a Europa para, posteriormente, adentrar aos demais continentes.[1]
A Economia Solidária é o conjunto de atividades de produção, distribuição, consumo e crédito, realizadas pela população rural e urbana, para gerar trabalho e renda. Sendo baseada no trabalho coletivo, na cooperação, autogestão e solidariedade, representa práticas fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o homem como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez da acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular.[2]
Na visão de uma política de Economia Solidária, a organização do trabalho coletivo e a disputa da economia são fatores determinantes na construção da
emancipação dos trabalhadores. Defende como caráter pedagógico o processo de conscientização e auto-organização dos trabalhadores, uma vez que essa construção passa pelo desenvolvimento de valores como igualdade, democracia participativa, cooperação e solidariedade.[3]
Importante salientar que, durante os “trinta anos de ouro” (1945-75), assim chamados porque se caracterizaram por elevado crescimento econômico, ausência de crises e emprego quase pleno (emprego tornou-se sinônimo de trabalho), nos países desenvolvidos, 80% ou mais da força de trabalho estava então a serviço de empresas de capital ou do setor público da economia. Em países subdesenvolvidos, essa porcentagem era menor, mas tendia a crescer pari passu com o desenvolvimento da economia. Por isso, as pessoas que estavam sem trabalho remunerado eram consideradas desempregadas, o que subentendia que estavam em busca de emprego, no setor privado ou público.[4]
O que se observa é que tanto nos países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos, a organização social do trabalho mudou. As empresas de capital reduziram drasticamente a mão-de-obra contratada, mediante a adoção de técnicas poupadoras de trabalho e da terceirização, isto é, da subcontratação de serviços de autônomos, empresas menores. O setor público, condicionado pelo surto de neoliberalismo, que vê no gasto público o pior dos males, também terceirizou grande parte dos serviços-meio (que se destinam a apoiar a atividade-fim), reduzindo assim a quantidade de funcionários de carreira. Além disso, o crescimento das economias tornou-se instável, periodicamente interrompido por crises financeiras, o que diminuiu a demanda por força de trabalho das empresas.[5]
Destaca-se que o impulso fomentador do trabalho solidário diz respeito às experiências relacionadas às oscilações no nível de emprego das economias capitalistas, bem como, à crise do chamado Estado do Bem-Estar Social, que levou grupos de trabalhadores desempregados ou autônomos a se organizarem de forma autogestionária para produzir, financiar, comercializar ou trocar mercadorias e serviços, criando assim um empreendimento em termos de economia solidária.[6]

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Referências:
[1] BRASIL Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). Histórico e documentos referenciais do FBES. Disponível em: http://www.fbes.org.br/index.php?option=com_docman&Itemid=18>. Acesso em: 03 out. 2008. [2] MANETTI, Dionei. Economia Solidária: uma construção autogerida pelos trabalhadores. Florianópolis: Democracia Socialista, 2008, p. 48.
[3] MANETTI, Dionei. Economia Solidária: uma construção autogerida pelos trabalhadores. Florianópolis: Democracia Socialista, 2008, p. 49.
[4] SINGER, Paul. Geração de trabalho e renda. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3186>. Acesso em: 02 out. 2008.
[5] SINGER, Paul. Geração de trabalho e renda. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=3186>. Acesso em: 02 out. 2008.
[6] COSTA, Marcelo Marchesini. Formação da agenda governamental: políticas públicas de economia solidária no Brasil e na Venezuela. 2008. Dissertação de Mestrado em Administração - Universidade de Brasília, Brasília, 2008, p. 56.




quarta-feira, 15 de outubro de 2008

ECONOMIA SOLIDÁRIA E INCENTIVO LEGISLATIVO À GERAÇÃO DE TRABALHO A PARTIR DO ASSOCIATIVISMO - PARTE I

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Eminente tratarmos do tema supra citado, uma vez que o mesmo, detona imenso valor social. Contudo o amparo legislativo ao trabalho associativo que, por intermédio de uma política de Economia Solidária, fomenta o desenvolvimento social do país.
A Economia Solidária é o conjunto de atividades econômico-produtivas realizadas pela população rural e urbana, para gerar trabalho e renda. Sendo baseada no trabalho coletivo, representa práticas fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o homem como sujeito e finalidade da atividade econômica.
Em se tratando de uma perspectiva que prioriza a Economia Solidária, a organização do trabalho coletivo e a disputa da economia são fatores determinantes na construção da emancipação dos trabalhadores. Defende-se o processo de conscientização e auto-organização dos trabalhadores, através de trabalho associativo, uma vez que a construção de uma Economia Solidária passa pelo desenvolvimento de valores como igualdade, democracia participativa e cooperação solidária.
O processo de ampliação dos espaços democráticos de controle do Estado e do capital pela população, por meio do trabalho associativo e da Economia Solidária, motiva o crescimento da auto-gestão da sociedade, bem como o protagonismo popular à inclusão social.
Contudo, necessário se faz que as políticas governamentais ratifiquem o processo de gestão democrática, analisando as realidades econômicas locais, bem como, as políticas públicas de incentivo, abrindo espaço para novas formas de socialização do poder político e econômico.
Ao discurtir o papel da Economia Solidária, elencamos um fenômeno socioeconômico que vem ganhando destaque em diversos países, desde o início dos anos 90. Trata-se de uma área ainda em desenvolvimento, tanto no que se refere às suas práticas, como às suas concepções teóricas.
O que se observa é que, tanto nos países desenvolvidos como nos subdesenvolvidos, a organização social do trabalho mudou. As empresas de capital e o setor público, tendo em vista a adoção da terceirização, isto é, da subcontratação de serviços de autônomos e empresas menores, reduziram drasticamente a mão-de-obra contratada. O crescimento das economias tornou-se instável, periodicamente interrompido por crises financeiras, o que diminuiu a demanda por força de trabalho das empresas.
Delimitando a problemática, coerente e sustentável seria a criação, por parte do poder estatal, de alternativas de trabalho e renda para os trabalhadores, condição essencial para a melhoria da qualidade de vida e inclusão econômica e social. Nesse sentido, infere-se como problemática central do presente estudo a seguinte indagação: em que medida o poder estatal desenvolve políticas públicas e prevê incentivos legislativos para desenvolver a Economia Solidária e apoiar a criação e a gestão do trabalho associativo?
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Continua...

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Estado de Sítio - Parte IV


Chega ao fim as publicações direcionadas a analise da obra “Estado de Sítio” de Albert Camus. Logo, o desfeiche da dramaturgia, e após, um pequeno comentário será tecido, para melhor compreende-la.

"A SECRETÁRIA
Logo não haverá mais erros. Um segredo. Uma máquina aperfeiçoada. Você vai ver.

Ela se aproxima dele, frase após frase, até toca-lo. Ela o segura pela gola, tremendo de fúria.

DIEGO
Vamos, acabe logo! Acabe com esta comédia suja! O que esta esperando? Faça seu trabalho e não se divirta comigo, que sou maior que você. Mate-me, então; é a única maneira, eu juro, de salvar esse belo sistema que nada escapa. Ah! Você só leva em conta os conjuntos! Cem mil homens, assim a coisa fica interessante. É uma estatística, e as estatísticas são mudas! Como elas se traçam curvas e gráficos, heim! Trabalha-se com gerações, fica mais fácil! E o trabalho se desenrola no silêncio e com o cheiro da tinta. Mas eu a previno: um homem sozinho incomoda muito mais – grita sua alegria ou sua agonia. Enquanto viver, eu continuarei a bagunçar sua ordem. Eu rejeito vocês, rejeito-os do fundo da minha alma!

A SECTRETARIA
Meu querido!

DIEGO
Cale-se. Pertenço a uma raça que honrava tanto a morte como a vida. Mas seus senhores chegaram: viver e morrer são desonras...

A SECRETARIA
É verdade...

DIEGO (Sacudindo-a.)
É verdade que você mente e vai mentir, de agora em diante, até o fim dos tempos! Sim! Eu já entendi seu sistema. Vocês lhes deram a dor da fome e das separações para distraí-los da sua revolta. Vocês os exaurem, devoram seu tempo e suas forças para que não tenham nem lazer nem ânimo! Eles se arrastam, fiquem contentes! Estão socinhos, mesmo sendo uma massa; eu também estou sozinho. Cada um de nós está sozinho graças à covardia dos outros. Mas eu, seviciado com eles, humilhado como eles, digo que vocês não são nada. E este poder que se alastra a perder de vista, até escurecer o céu, é apenas uma sombra lançada sobre a terra; em um segundo, um vento furioso vai dissipa-la. Vocês acreditaram que podiam reduzir tudo a cifras e formulas! Mas, na sua bela nomenclatura, esqueceram a rosa selvagem, os sinais no céu, os rostos do verão, a grande voz do mar, o instante do dilaceramento e a cólera dos homens! (ela ri.) Não ria. Não ria, sua imbecil. Vocês estão perdidos, eu afirmo. Enquanto conseguem vitórias aparentes, já estão vencidos, pois há no homem – olhe para mim – uma força que vocês não vão diminuir, uma loucura iluminada, um misto de medo e coragem, ignorante e vitoriosa para todo e sempre. É esta força que vai se erguer, e você vai saber que sua glória não passa de fumaça.

Ela ri

DIEGO
Não ria! Não ria!

Ela ri, ele a esbofeteia e, ao mesmo tempo os homens do coro arrancam suas mordaças e soltam um grande grito de alegria. Mas em sua fúria, Diego esmagou sua marca. Ele a leva a mão e à contempla em seguida.
A SECRETÁRIA
Magnífico!

DIEGO
O que foi?

A SECRETÁRIA
Você foi magnífico na sua cólera! Estou gostando mais ainda de você.

DIEGO
O que aconteceu?

A SECRETÁRIA
Você está vendo. A marca desaparece. Continue, você está indo por um bom caminho.

DIEGO
Estou curado?

A SECRETÁRIA
Vou lhe conta rum pequeno segredo... o sistema deles é excelente. Você tem razão, mas há uma falha...

DIEGO
Não estou entendendo.

A SECRETÁRIA
Há um defeito meu querido. Pelo que eu saiba, sempre bastou que um homem vença seu medo e se revolte para que a máquina comece a falhar. Não digo que ela pare, longe disso. Mas, enfim, ela falha as vezes, degringola completamente.

Silêncio...

DIEGO
Pó que está me dizendo isso?

A SECRETÁRIA
Você sabe, cansa fazer o que eu faço, temos nossas fraquezas. E, depois, você descobriu por conta própria.

DIEGO
Teria sido poupado, se não lhe tivesse dado um tapa?

A SECRETÁRIA
Não, eu vim para acabar com você, de acordo com o regulamento.

DIEGO
Então, eu sou o mais forte!

A SECRETÁRIA
Ainda está com medo?

DIEGO
Não.

A SECRETÁRIA
Então, não posso fazer nada contra você. Isto também está no regulamento. Mas posso lhe dizer: é a primeira vez que este regulamento tema minha aprovação.

Ela se retira docemente. Diego tateia o próprio corpo, olha ainda sua mão e vira-se bruscamente na direção dos gemidos.
Ela vai, em meio ao silencio, até um doente amordaçado. Cena muda. Diego avança a mão para a mordaça e a retira.
É o pescador. Olham-se em silencio, e depois:

O PESCADOR
Boa noite, irmão. Há muito tempo que eu não falava.

Diego sorri para ele.

O PESCADOR (Erguendo os olhos ao céu.)
O que é isto?

O céu claro, de fato. Sopra uma brisa, que sacode uma das portas, fazendo com que algumas cortinas flutuem.
O povo as cerca agora. Mordaças desatadas, os olhos levantados para o céu.



O vento do mar...

-PANO-
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* [Percebemos nesse desfeche da dramaturgia, a manifestação subjetiva do indivíduo enquanto ser social, capaz de emanar a coragem necessária, ora velada, ora aberta, para desmecanizar o monopólio do status totalitarista.
Para Albert Camus, o medo era o maior mal do Séc. XX e, por isso, ele o utiliza, bem como a superação do mesmo, como fio condutor desta obra.
Contudo, a força coercitiva, uma caracteristica governamental, confunde-se com seu oposto, a fraqueza. Ou seja, um povo crédulo – e a credulidade mecanismo fomenal estatal – facilitaria muito a permanência da opressão, caso não sueparada.]

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Estado de Sítio - Parte III

As próximas publicações serão direcionadas a analise da obra “Estado de Sítio” de Albert Camus. Postarei trechos da dramaturgia, e após, pequenos comentários serão tecidos, para melhor compreende-la.

Dando Continuidade...

"NADA
A ordem foi dada: todos os comandantes de distrito devem fazer seus administradores votarem a favor do novo governo.

PIRMEIRO ALCAIDE
É, mas não é fácil. Há o risco de alguns votarem contra.

NADA
Não se você seguir os bons princípios.

O PRIMEIRO ALCAIDE
Bons princípios?

NADA
Os bons princípios dizem que o voto é livre. Isto quer dizer, serão considerados livremente expressos os votos favoráveis ao governo. Quanto aos outros – para que não existam entraves secretos que poderiam afetar a liberdade de escolha -, serão descontados de acordo com o método preferido: alinhando a parte dividida ao cociente dos sufrágios não expressos em relação a um terço dos votos eliminados. Está claro?

O PRIMEIRO ALCAIDE
Claro, senhor... enfim, acho que compreendo.

NADA
Admiro-o alcaide. Mas, compreendendo ou não, não s e esqueça de que o resultado infalível deste método consiste em contar como nulos os votos contra o governo.

O PRIMEIRO ALCAIDE
Mas o senhor não disse que o voto era livre?

NADA
E de fato é. Apenas partimos do principio de que um voto negativo não é um voto livre. É um voto sentimental, logo, encadeado pelas paixões.

O PRIMEIRO ALCAIDE
Eu nunca tinha pensando assim.

NADA
Porque não tinha uma idéia exata do que é liberdade."

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* [Neste trecho, notamos uma liberdade às avessas e a manipulação da vontade popular. Onde “o direito” à participação popular, não exprime sua autonomia, mas sim a soberania da classe dirigente que impõe à sociedade mecanismos de dominação. Gramsci bem descreveria como o espaço da Sociedade Política“conjunto de mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão.”
Visto que, a atividade política deveria se colocar sobre duas tarefas: obter o consenso da sociedade civil e mobilização em torno de direções a serem adotadas pela sociedade, para à posteriori, transformar o resultado deste consenso em poder de direção hegemônico na/para sociedade.]

sábado, 19 de julho de 2008

Estado de Sítio - Parte II

As próximas publicações serão direcionadas a analise da obra “Estado de Sítio” de Albert Camus. Postarei trechos da dramaturgia, e após, pequenos comentários serão tecidos, para melhor compreende-la.

Dando Continuidade...


"Luz na casa do Juiz.
VITÓRIA
Não, pai. Você não vai entregar esta velha criada sob o pretexto de que está contaminada pela peste. Já se esqueceu de que ela me criou e que lhe serviu sem nunca reclamar?
O JUIZ
Quem ousaria contestar o que decidi?
VITÓRIA
Você não pode decidir tudo, a dor também tem seus direitos.
O JUIZ
Meu papel é preservar esta casa e impedir que o mal entre. Eu...
DIEGO
Foi o medo que me empurrou para sua! Estou fugindo da peste.
O JUIZ
Não, você não esta fugindo dela, você a carrega consigo. (ele aponta para a marca que Diego tem na axila, que identifica os contaminados). Saia desta casa.
DIEGO
Não, deixe-me ficar! Se me expulsar, vão me misturar com os outros. Será o amontoado da morte.
O JUIZ
Sirvo à lei, não posso abriga-lo aqui.
DIEGO
Servia à lei antiga, você não tem nada a ver com a lei nova (do estado de sítio).
O JUIZ
Não sirvo a lei pelo que ela diz, mas porque é a lei.
DIEGO
Mas e se a lei for o crime?
O JUIZ
Se o crime se converte em lei, deixa de ser crime.
DIEGO
Deve-se punir a virtude, então?
O JUIZ
Até a virtude deve ser punida, caso se atreva a discutir a lei.
VITÓRIA
Pai, não é a lei que o move, é o medo.
O JUIZ
Ele também tem medo.
UM GUARDA
A casa esta condenada por ter abrigado um suspeito.
DIEGO (gargalhando)
A lei é boa, você bem sabe. Mas é recente e você não a domina totalmente. Juiz, acusados e testemunhas – agora somos todos irmãos.

Entram à mulher do juiz, o filho menos e a filha.

A MULHER
Interditaram a porta.
VITÒRIA
A casa está condenada.
O JUIZ
Por causa dele, vou denuncia-lo, e eles abrem a porta.
VITÓRIA
Pai, e a honradez?
O JUIZ
A honradez é um assunto de homens, e não há mais homens nessa cidade.

Ouvem-se apitos, o barulho de uma corrida que se aproxima. Diego escuta, olha enlouquecido para todos os lados e, repentinamente apodera-se do menino.

DIEGO

Olhe, homem da lei! Basta um gesto seu e esmago a boca de seu filho na marca da peste.
VITÓRIA
Isso é covardia Diego.
DIEGO
Não é covardia na cidade dos covardes.
A MULHER (correndo para o juiz)
Prometa! Prometa a esse louco o que ele quiser.
A FILHA DO JUIZ
Não pai, não faça nada, isso não tem nada a ver com a gente.
A MULHER
Não a ouça. Você sabe que ela odeia o irmão.
O JUIZ
Ela tem razão, isto não tem nada a ver conosco.
A MULHER
E você também. Odeia meu filho.
O JUIZ
Isso mesmo, seu filho.
A MULHER
Oh! Você não é homem de ficar remoendo o que já foi perdoado.
O JUIZ
Eu não perdoei. Apenas obedeci à lei que, aos olhos de todos, me fazia pai deste menino.
VITÓRIA
É verdade mãe?
A MULHER
Você também me despreza.
VITÒRIA
Não, mas tudo desmorona ao mesmo tempo. A alma balança

O Juiz da uma passo em direção à porta.

DIEGO

A alma balança. Mas a lei nos sustenta, não é juiz? Todos irmãos! (levanta o menino diante dele.) Você também. Vou dar-lhe o beijo dos irmãos.
A MULHER
Espero, Diego, eu suplico! Não seja como este que endureceu até o coração. Mas ele vai ceder (ela corre para a porta e se pões no caminho do juiz.) Você vai ceder, não vai?
A FILHA DO JUIZ
E por que ele cederia? E o que lhe importa o bastardo, que é o centro das atenções?
A MULHER
Cale-se. A inveja está lhe roendo a alma, e tudo escurece. (ao juiz.) Mas você, você está perto da morte, bem sabe que não há nada e a se deseja nesta terra a não ser o sono e a paz. E não vai conseguir dormir à noite, no seu leito solitário, se deixar que isso aconteça.
O JUIZ
A lei está do meu lado. Ela me dará repouso.
A MULHER
Cuspo na sua lei. E olhe que tenho o direito a meu favor: o direito dos que amam e não querem ser separados; o direito dos culpados ao perdão e dos arrependidos a serem honrados! Sim, cuspo na sua lei. Tinha a lei do seu lado quando pediu desculpas covardes àquele capitão que o desafiou para um duelo? Quando trapaceou para escapar do serviço militar? Tinha alei do seu lado quando convidou para sua cama aquela moça que estava processando o patrão indigno?
O JUIZ
Cale a boca, mulher.
VITÓRIA
Mãe!
A MULHER
Não, Vitória, eu não me calarei. Calei durante todos esses anos. E o fiz pela minha honra e pelo amor a Deus. Mas a honra não existe mais. Um fio de cabelo desse menino, para mim, é mais precioso que o próprio céu. Não me calarei. E vou falar, ao menos para ele, que nunca teve o direito a seu lado; porque o direito –m ouviu bem? – está do lado dos que sofrem, gemem e esperam. Não está, não pode estar, com quem acumula e calcula.

Diego soltou o menino.

A FILHA DO JUIZ
É, são os direitos do adultério.
A MULHER (gritando)
Não estou negando meu erro, vou grita-lo para todo mundo ouvir. Mas sei, na minha miséria, que a carne tem lá seus pecados, assim como o coração tem seus crimes. O que se faz no calor da paixão deve ser perdoado.
A FILHA
Perdão para as cadelas!
A MULHER
Sim! Pois elas têm um ventre, podem gozar e gerar!
O JUIZ
Mulher! Sua defesa não esta consistente! Vou denunciar este homem que causou todo esse transtorno! Faço isso duplamente satisfeito, pois será em nome da lei e do ódio.
VITÓRIA
Maldito seja, disse toda a verdade. Sempre julgou com ódio enfeitado com o nome da lei. Mesmo as melhoers leis adquiriram um gosto amargo na sua boca; a boca azeda de quem nunca amou. Ah! O asco me sufoca! Vamos, Diego, abrace-nos, vamos apodrecer juntos. Mas deixe viver este homem da lei para quem a vida é uma punição.
DIEGO
Largue-me, tenho vergonha de ver até que ponto chegamos.
VITÓRIA
Também tenho vergonha de morrer.
A MULHER
Chegou à hora de os tumores rebentarem. Não somos os únicos. Toda a cidade arde com a mesma febre.
O JUIZ
Cadela!
A MULHER
Juiz!."
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* [Camus, bem elucida através deste dialogo, o escravismo jurídico à soberania totalitarista do estado de sítio, bem como a falta de eqüidade social, na figura do magistrado.
Diante do choque de moralidade em tela, a olhos de sociedade moderna, podemos analisar que o coerente seria não a busca pela anomia, mas uma dominação justa em oposição à ausência de denominação ou a formas injustas de dominação. Onde, todavia, a lei eticamente considerada não deveria estar a serviço da opressão, mas sim, superar o legalismo estreito e positivar as conquistas na direção da vida em abundancia para todos; assim, na busca do sonho, na luta por ele, as vitórias devem ser erguidas à condição de lei e transformada em condutas, sem a outorga de poderes que fragmentem as camadas sociais em classes distintas.]

terça-feira, 15 de julho de 2008

Estado de Sítio - Parte I

As próximas publicações serão direcionadas a analise da obra “Estado de Sítio” de Albert Camus. Postarei trechos da dramaturgia, e após, pequenos comentários serão tecidos, para melhor compreende-la.
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"A SECRETARIA
Sim, isso prova que esta cidade está começando a ser administrada. Estamos convictos de que são culpados. Culpados de serem governados, é claro. Mas é preciso que vocês mesmos se sintam culpados. E não se culparão enquanto não se sentirem exaustos, o resto vai por si.

NADA
Viva nada! Ninguém se entende mais: estamos no instante perfeito!

O CORO

Éramos um povo, agora somos uma massa! Éramos convidados, hoje convocados! Trocávamos o pão e o leite, e agora nos abastecem! Batemos os pés (eles batem os pés.) bate o pé e dizem que ninguém pode fazer nada por ninguém, e que é preciso esperar o lugar que nos foi designado na fila! Para que gritar? Nossas mulheres não têm mais o rosto florido que insuflava nosso desejo. A Espanha desapareceu! Vamos bater os pés! Oh dor! Estamos pisando em nós mesmos! Sufocamos nessa cidade fechada! Ah se pelo menos o vento soprasse..."
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* [Após decretação do Estado de Sítio: Clara se faz a crítica ao recrudescimento do autoritarismo, ao exagero da administração estatal e seus emaranhados burocráticos para com os cidadãos. De bom grado é, trazer a analise para os dias atuais, onde tamanho formalismo se faz presente, massificando o social e tornando os direitos fundamentais burocráticos e eruditos ao ponto da não compreensão].

sexta-feira, 27 de junho de 2008

MEIO (FIM DO) AMBIENTE

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Texto produzido pelo Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos do Curso de Direito da UnC-Caçador; à fins de analise e produção, sobre a subjetividade humana e o padronismo do desiquilíbrio ecológico.

Por: Sócrates Fusinato*
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(Os animais destroem menos que o animal etiquetado Homem - arrogância de uma avocação da razão a serviço da dominação do instinto).

E branda-se aos quatro ventos: o meio ambiente não deve ser mais meio e sim um fim em si mesmo. Um fim antes do fim. Paradoxo que se faz verdadeira pergunta sem resposta. E o artificial é ovacionado nas propagandas que vendem a felicidade em chips e artefatos mais. E o artificial é renegado, é julgado nocivo, pois de natural pouco ainda há. O homem, boca-de-promessas, começa a pagar o mal-dito.
A visão idílica de uma natureza inocente e acolhedora, vítima de um tal animal que só deixa de ser animal quando posto em quesito seu potencial de destruir o que espreita a sua volta, cai literalmente por terra. A natureza desloca-se para fazer o Homem-conforto indagar-se a respeito do preço do conforto que o alberga. A natureza, antes chamada mãe, agora é madrasta que assola os filhos (des)naturados. Uma espécie de política natural do terror assinala no presente um alerta intermitente de imprevistos sem fim que colocam em risco a existência de populações inteiras. Não mais a lógica da bomba-atômica, humanamente endereçada em tempo e lugar certos, mas a lógica sem qualquer lógica de mares que engolem cidades, terremotos que reduzem tudo a pó, ventos que varrem para longe o construído, o cultural, enfim bombas que não são bombas mas cujo efeito desmonta a mais confiante das humanas fortalezas. O homem primitivo que decidiu viver em bando para proteger-se da natureza chega agora a um terrível dilema (vivido como uma espécie de horror indiferente ao fracasso): já estando em bando, já tendo munição suficiente para exterminar o próprio bando, o homem assusta-se quando imagina possível ser que a segurança assegurada pelo bando não mais suficiente seja para lidar com as forças da natureza. Um socialismo às avessas revela-se atroz, uma vez que ante a derrocada humana na luta contra a natureza, a miséria torna-se literalmente bem comum, sendo que a única propriedade privada em tais situações acaba sendo a própria vida. E temas que hoje ouriçam as orelhas dispostas à intelectualidade serão conversas de botequim, preocupações menores, pois a grande preocupação (enfim os homens se tornarão dogmáticos, à força) será manter vivo o todo sem saber muito claramente de que forma o todo poderá sucumbir, em que momento exato será atacado, que tipo de falta, escassez o levará à morte. Uma indigesta indagação ética pode aqui ser sugerida: de que forma aguardar o amanhã sem morrer hoje? A vida que se sabe, inclusive artificialmente, fazer viver corre o risco (e arrisca) de ver seu projeto de humanidade relegado a refugo, mero capítulo da história, parte da evolução, pois certamente seguirá a natureza sem o homem para ser outra coisa além dele, sem qualquer remorso. E nesse embate, quem assumirá o papel de juiz da causa? O homem que desde que se fez homem açoitou a natureza ou a natureza que cansada de ser mula de carga agora açoita o homem e ameaça derrubá-lo de suas costas? Quem viverá para assistir ao veredicto final deste litígio em processo?


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* Mestre em Filosofia Jurídica pela Universidade Federal de Santa Catarina e títular das disciplinas de Filosofia e Sociologia do Curso de Direito da Universidade do Contestado - Campus Caçador.
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