1. O título dado a este estudo, com o qual desejo prestar homenagem à memória do querido Professor José Joaquim Calmon de Passos, não traduz inteiramente a idéia que pretendo expor em seu texto. Sou, neste aspecto – talvez em todos os demais – ainda moderno. Os atuais doutorandos, por um movimento que imagino inconsciente, dão a suas teses extensíssimos títulos, reproduzindo, suponho que novamente inconscientes o estilo dos juristas antigos. A estética jurídica, ao menos na tradição luso-brasileira, parece ter feito um regresso ao passado.
O mestre de Lobão, o grande Manoel de Almeida e Sousa, deu a seu tratado das execuções o seguinte título: "Tratado enciclopédico, prático, crítico, sobre as execuções, que por sentenças de todos os incidentes nelas, desde o seu ingresso até a última e pacífica posse dos arrematantes, e adjudicatários dos bens executados, e até a última decisão do concurso de credores e sua preferência sobre os dinheiros, produtos dos mesmos bens etc.". Não esqueceu sequer do etc.
Recentemente (1994) Fernando José Bronze, um dos mais importantes juristas portugueses, para sua primorosa dissertação de doutorado, deu-lhe este título: "A metodonomologia entre a semelhança e a diferença (Reflexão problematizante dos pólos da radical matriz analógica do discurso jurídico)".
Apesar da respeitável extensão do título dado à tese, o jurista apressou-se a informar que o título originariamente excogitado – "mesmo depois de provisoriamente estruturado uma boa parte da obra" – alcançava uma dimensão equivalente ao triplo dessa a que ficara reduzido na redação definitiva.
O exemplo naturalmente reproduz-se em outras tantas obras jurídicas modernas. O grande Castanheira Neves, tratando da crise atual da Filosofia do Direito, dá-lhe este título: "A crise actual da filosofia do direito no contexto da crise global da Filosofia - Tópicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitação".
Entre as duas tendências análogas, ficam os cultores do espírito moderno, do pensamento abstrato, dos que herdaram a cultura do Iluminismo europeu e seu amor pela ordem e pelas uniformidades, próprias das ciências naturais.
O retorno ao passado ou, talvez, a necessidade de superar o formalismo dos títulos vazios, é um fenômeno singular de sociologia jurídica. O que se poderia indicar como pós-modernidade, enquanto revolta, apenas revolta difusa, contra a modernidade, apresenta-se como um retorno aos padrões clássicos. O fenômeno não surpreende, se tivermos presente a quantidade de princípios e institutos do direito comum medieval que vêm sendo reintroduzidos em nosso sistema. Pensemos em dois deles: as tutelas de urgência, especialmente a tutela cautelar, representadas pelas inúmeras tentativas de sumarização das demandas, e o procedimento monitório.
2. O título pretende aludir à crise de toda a civilização ocidental, no momento de sua vitoriosa globalização. Quando percebo as dimensões da crise, especialmente de valores, ainda que esteja muito longe de poder avaliá-la, volta-me à memória o prognóstico de um dos mais lúcidos economistas do século XX, a quem associo as observações de outros eminentes sociólogos contemporâneos. O vaticínio de Joseph Schumpeter fora de que o êxito final do capitalismo seria a sua derrota. Ele não seria vencido por seus inimigos, mas pelo seu definitivo sucesso: "A tese que me esforçarei por estabelecer é a de que o desempenho real e esperado do sistema capitalista se faz de maneira a negar a idéia de seu colapso sob o peso do fracasso econômico; mas seu próprio êxito solapa as instituições sociais que o protegem e 'inevitavelmente' cria condições em que ele não é capaz de viver e que apontam com força para o socialismo como seu herdeiro virtual" (Capitalismo, socialismo e democracia, versão brasileira da edição inglesa de 1979, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1984, p. 87). Do fato de que ele suga, qual parasita, o Estado que o sustenta, insistindo, cada vez com maior veemência, na necessidade de mais e mais liberdade para o mercado, não poderíamos ter exemplo mais significativo e dramático do que a crise global em que estamos navegando, sem ao menos poder dimensionar sua real extensão.
3. Embora Schumpeter tenha advertido para a distinção entre ciência e profecia, para mostrar que as considerações que iria fazer deveriam ser tomadas com as devidas cautelas, impressiona, na evolução do capitalismo a tendência que se tem mostrado irresistível na construção de um mundo homogeneizado, não apenas do mundo econômico mas, especialmente, do mundo cultural. Ora, o sonho de um mundo culturalmente uniforme contraria o próprio sentido de cultura, que necessita, para sobreviver, das diversidades. Sobre esta questão, tive oportunidade de escrever o seguinte: "O sonho, que tem embalado o pensamento dominante, de que, afinal, estaríamos próximos a alcançar o ideal de uma compreensão universal e homogênea da vida e de seus problemas, pela construção de uma visão universal dos processos sociais e políticos é uma suposição inteiramente equivocada, como adverte Boaventura de Souza Santos, aludindo a uma observação de Wallerstein: 'a cultura é por definição um processo social construído sobre a intersecção entre o universal e o particular' " (Globalização ou utopia - obra coletiva, Edições Afrontamento, 3ª edição, 2001, Porto, p. 54, in O seguro e as sociedades cooperativas - Relações jurídicas comunitárias, 2008, Livraria do Advogado, Porto Alegre, p. 13).
4. O objetivo principal destas observações não é falar do que se costuma indicar como "crise global". Quero dedicar-me – naturalmente de maneira muito sumária – à crise da jurisdição brasileira. Claro, esta nossa crise tem como pano de fundo o que acontece no mundo, especialmente nos países "construtores da realidade", os países "formadores de opinião", mais do que isso, formadores de modas e costumes, porque detentores das fontes originárias e sagradas das comunicações virtuais.
5. A opinião dominante entre os juristas brasileiros, diria opinião unânime, não apenas dos especialistas, mas da opinião pública – previamente construída pelos meios de comunicação de massa –, é de que a jurisdição brasileira tem péssimo desempenho, é excessivamente morosa, produzindo, talvez como seu mais grave defeito, a insegurança gerada para todos quanto participam, de uma ou outra forma, do drama judiciário.
Pois a minha contrariedade com a opinião dominante começa por recusar validade a este diagnóstico. Venho sustentando que a jurisdição brasileira – dentro do marco institucional que a concebeu e dos pressupostos que lhe imprimem o sistema – funciona bem. Diria funciona além do que se poderia esperar de uma estrutura anacrônica, ainda dependente dos ideais do iluminismo europeu.
6. Tenho insistido em que os problemas que afligem nossa prática judicial são estruturais, nunca funcionais. Poderíamos sugerir que a falta de percepção para os obstáculos estruturais que tornam inviável a crítica ao sistema, seja uma conseqüência de nossa submissão ao paradigma racionalista, gerador de todas as formas de normativismos contemporâneos. Mas esta explicação é absolutamente equivocada. Esta mesma compreensão teve um eminente professor da Universidade de Lisboa, ao proclamar o seguinte, em excelente ensaio publicado recentemente entre nós:
"Um outro mito que importa desfazer é o de que o Código de Processo Civil é responsável pelas ineficiências que afectam a administração da justiça em Portugal. A verdade é outra: essas ineficiências têm muito mais a ver com a organização judiciária, com as fortes assimetrias regionais quanto à litigância, como a forma como se litiga em juízo e com a qualidade e gestão dos recursos humanos do que com a legislação processual civil. O Código de Processo Civil é sempre aplicado no contexto mais vasto da administração da justiça, pelo que não é possível atribuir-lhe a priori, a responsabilidade total pela ineficiência do sistema" (Miguel Teixeira de Sousa, um novo processo civil português:: à la recherche du temps perdu?" - R. T., Repro, nº 33, julho, 2008, p. 218).
A fidelidade a um determinado paradigma, longe que eliminar o senso crítico daqueles que o operam, estimula-os permanentemente a investigá-lo, para determinar o grau de sua resistência aos eventuais casos excepcionais que possam invalidá-lo. É o importante e indispensável labor que Thomas Kuhn denomina "ciência normal" (A estrutura das revoluções científicas, versão brasileira,1983, Editora Perspectiva, São Paulo, cap. 4, p. 57 e sgts.). O cientista que trabalha no paradigma desconfia de sua validade indefinida ou perpétua. Conseqüentemente, seu espírito crítico estará sempre aguçado e vigilante. Naturalmente, não é o que acontece com a doutrina processual brasileira.
7. Vou relatar um episódio, de que foi protagonista um dos mais brilhantes processualistas italianos, ocorrido recentemente na doutrina daquele país, para compará-lo com o que ocorre entre nós. Em estudo publicado em nossa Revista de Processo (RePro), em março de 2008 (n. 157), Andrea Proto Pisani, mostrava-se visivelmente preocupado com o futuro da Corte de Cassação italiana, por um motivo que ele reputava comprometedor. Trata-se da carga insuportável de feitos atribuídos anualmente a cada Conselheiro, volume esse que vem aumentando constantemente, a ponto de transformar os julgamentos da mais alta Corte do Poder Judiciário italiano numa espécie de "giustizia di serie".
8. Para que se possa comparar o caso italiano com a dramática experiência vivida pelas cortes supremas brasileiras, é indispensável registrar que a sessão civil da Cassação italiana conta com 159 Conselheiros; sendo que destes 134 exercem regularmente a jurisdição e os demais ocupam funções administrativas. As razões para a preocupação manifestada por Proto Pisani tem como causa o vertiginoso aumento do número de feitos que chegam à Corte. Desprezando o número de recursos relativos aos anos 80 do século passado, quando o total anual era pouco mais de oito mil (8.000), chegou-se, no ano de 2005, a cifra recorde de 31.177 processos submetidos à Cassação, dos quais foram julgados 24.776 (Crisi della Cassazioni: la (non più rinviabile) necessità de una scelta, Revista de Processo (RePro), Editora Revista dos Tribunais, vol. 157, p. 262). No ano judiciário seguinte, a Corte julgou 29.641 recursos, resultando pendentes de julgamento 100.609, contra apenas 23.661 não encerrados no ano anterior.
Proto Pisani toma o ano de 2006, como critério para comparar o que ele considera "un dato allucinante", capaz de pôr em risco o futuro da Corte "Si dividiamo il numero di 29.641 ricorsi esauriti con il numero de 134 consiglieri, abbiamo il dato allucinante secondo cui ciascum conseglieri ha redatto in media (sotolineo questo rilievo) circa 220 decisioni nel corso dell´anno" . . . Ora non è esigibile che un símile numero di decisioni siano prese con quella attencioze e qual´approfondimento necessario e indipendenti che dovrebbe essere próprio di un giudice superiore di ultima istanza" (p. 262-263). Proto Pisani compara a situação "allucinante" existente na Cassação italiana com o que ocorre na experiência alemã: "È interessante notare che (secondo dati del 2005) nella Corte federale tedesca ciascuno dei 170 giudici civili ha pronunciato in media solo 80 decisioni, cioè un numero adeguato a consentire quella qualità e quel grado di approfondimento che, come si diceva, dovrebbe essere próprio di ogni magistratura di ultima istanza" (p. 263).
9. Que nos cabe dizer, a respeito dessa "alucinante" condição da Cassação italiana, se a compararmos com a experiência vivida pelas nossas Cortes Supremas? Não pretendo comentar essa questão extraordinariamente surpreendente. Registrei-a com a exclusiva intenção de confirmar que a submissão a um determinado paradigma não embota o senso crítico daqueles que o praticam. Ao contrário, como insiste em mostrar Thomas Kuhn, é precisamente desse senso crítico que se alimenta a chamada "ciência normal", essa classe de ciência submetida ao paradigma, cuja função, porém, é permanentemente testá-lo, para conferir a fidelidade a seus pressupostos.
10. Qual o fator misterioso que torna a doutrina brasileira inteiramente alienada, despida da mais insignificante parcela de senso crítico, capaz de denunciar a alucinante loucura a que submetemos nossos Tribunais Supremos? Qual o misterioso fator que nos permite conviver com uma situação análoga em todos os setores da jurisdição comum, sem que sobre essa anomalia patológica se levante uma voz, sequer, para secundar o gesto de Proto Pisani, ao denunciar o que, para a doutrina italiana, pareceu um "dato allucinante"?
O número de recursos que um magistrado alemão da Suprema Corte julga num ano, nossos Ministros, tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do Superior Tribunal de Justiça, julgam em apenas um dia!
Na área dos tribunais ordinários, essas produções "alucinantes", logradas pelos magistrados, chega a ser objeto de comparações e pesquisas estatísticas. Recentemente, a internet noticiou o novo recorde de julgamento de que foi protagonista, no Tribunal Superior do Trabalho, o Ministro Emmanuel Pereira, ao julgar, em um ano, 3.382 recursos. Ninguém assombrou-se com a notícia. É possível que, para a maioria dos leitores, esse feito extraordinário deva ser tomado como exemplo a ser seguido pelos demais magistrados. Realmente, é por esse caminho que pensamos obter a modernização de nossa anacrônica e emperrada jurisdição.
11. Feita essa longa digressão, quero retomar a linha de minha exposição, ligada à crise da jurisdição brasileira. Quem observa o estado lamentável, diria terminal, em que ela se encontra, percebe que nossa doutrina perdeu a capacidade de indignar-se, amoldou-se ao que, para ela, nada mais é do que um "fato natural", contra o qual nada pode ser feito. Esta é, de fato, a decisiva observação de Arthur Kaufmann, ao mostrar a equivalência entre o "Direito Natural clássico" e o Positivismo Jurídico (La storicità del diritto alla luce dell´errmeneutica, na obra "Filosofia del diritto ed ermeneutica", versão italiana, 2003, Giuffrè, p. 54 e sgts.). Assim como o Direito Natural, também o positivismo legislativo é pensado como se as normas e os conceitos que ele constrói não fossem históricos, que devessem permanecer estratificados no tempo. Somos herdeiros e fiéis praticantes do positivismo normativista, que nos legaram processualistas europeus, especialmente italianos. Sucede, no entanto, que as concepções que foram válidas para a sociedade rigorosamente estruturada e homogênea da Europa do início do século XX – tempo em que ainda era possível imaginar que a lei fosse dotada de uma "vontade constante" – tornou-se uma ingênua ilusão, quando tentamos aplicá-las às nossas atuais circunstâncias culturais e políticas. Minha geração ainda conviveu com essa imagem chiovendiana da lei como expressão de uma vontade perene. Encontramo-nos envolvidos por uma sociedade essencialmente hermenêutica, com incontáveis visões de mundo e, naturalmente, obrigados a lidar com uma linguagem dotada de plurivocidade, a exigir permanente interpretação.
Hoje soa como uma leviandade a afirmação de Chiovenda de que "juridicamente, a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da lei" (Instituições de direito processual civil, vol. I, versão brasileira, 2ª edição, 1965, Saraiva, p. 44).
É verdade que Chiovenda fizera essa afirmação para justificar que o eventual erro cometido pelo juiz não autoriza a sustentar que o direito efetivo, mas desconhecido pelo julgador, sobreviva à sentença, nem a afirmar, de modo geral, que antes da sentença não existia direito. Mas, em nossas atuais circunstâncias, dizer que todas as sentenças expressam a "vontade de lei", sugere uma aberta confissão do mais puro decisionismo judicial, próprio, aliás, do positivismo de que tanto Chiovenda, quanto Carnelutti e Calamandrei alimentaram-se.
12. No caso dos sistemas formados a partir do direito romano-canônico medieval, de que é exemplo o processo civil brasileiro, a permanência do mito da "vontade constante" da lei, é potencializado, como fator negativo, pela circunstância de ainda permanecermos fiéis ao pressuposto político de que o juiz não deve interpretar o texto legal, cabendo-lhe apenas a tarefa de "revelar-lhe" o sentido imutável.
13. Qual a causa dessa importante limitação exegética? A causa é facilmente explicável. A jurisdição que nos foi transmitida pela Revolução Francesa tem como exclusiva finalidade a declaração da "vontade da lei", expressa pelo respectivo texto legal. Ou seja, o juiz é um ser carente de vontade. A sentença é pura e simplesmente fruto de uma atividade cognitiva, nunca volitiva.
14. A conseqüência óbvia desta concepção é privarem-se os juízes de produzirem verdadeiras decisões, posto que lhes cabe apenas "declarar" a "vontade da lei". Quem decide será sempre o legislador. Veda-se, portanto, a possibilidade de qualquer discricionariedade no ato de julgamento. A quem apenas julga – sem que o sistema lhe exija, antes de decidir, "decidir-se", entre duas alternativas legítimas – será sempre incabível indagar o "por que" julgou, quais as razões que o levaram a aceitar aquela conclusão. A pergunta pertinente será sempre "como" foi descoberta a "vontade da lei"?
A esta indagação, o julgador responderá fazendo extensas "explicações" de como chegou à conclusão aceita no julgado. Mostrará, inicialmente, que seu sentimento jurídico, desde que tomara conhecimento adequado do caso, o fizera inclinar-se pela solução que afinal tornou-se vitoriosa. A seguir, buscou nas lições dos grandes mestres subsídios que amparassem seu sentimento inicial de justiça, o mesmo fazendo com uma ampla e criteriosa pesquisa jurisprudencial. Este fora o caminho que lhe permitira revelar na sentença a "vontade concreta da lei", como dissera Chiovenda. Todavia, como pondera Sergi Guasch Fernández, "fundamentar ou justificar uma decisão é diferente de explicá-la" (Es hecho y el derecho en la casición civil, Bosch Editor, 1998, Barcelona, p. 447). Nossos juízes "explicam" como descobriram a "vontade da lei", não fundamentam a decisão. Simplesmente não a fundamentam porque sua missão está (estava!) limitada a descobrir – e verbalizar – a "vontade da lei". O sistema concebera uma jurisdição de estilo oracular, a quem não se deve indagar a respeito do "porquê" de suas previsões. Quem tem presente o que ocorreu na Assembléia Constituinte francesa e nos esforços de Napoleão contra os juízes que teimavam em interpretar seu Código, pode avaliar a força desse paradigma. Para que o julgador possa, além de julgar, decidir, será indispensável que o sistema lhe conceda um determinado grau de discricionariedade. Sem discrição que reconheça a existência de, pelo menos, duas soluções razoáveis, igualmente legítimas, não haverá autêntica decisão.
A análise permite-nos tratar, agora, do que eu indico como sendo a "crise da jurisdição brasileira", ou seja, a contribuição local para a crise que envolve o mercantilismo, hoje globalizado e seus reflexos no desempenho de nossa jurisdição.
15. Antes de relacionar os fatores responsáveis pela crise local, que tenta destruir a jurisdição, tal como ela nos foi transmitida pela cultura clássica, temos de ter presente que o Brasil jamais viveu uma autêntica modernidade; não teve oportunidade de construir e conviver com os padrões, as instituições e a própria cultura criados pela modernidade.
De país agrícola, com instituições semi-feudais, foi lançado, no limitadíssimo período de pouco mais de quarenta anos, numa sociedade urbana de massa, empurrando para uma economia moderna de mercado milhões e milhões de seus camponeses, jogados, sem planos ou projetos governamentais, nas encostas das grandes cidades. O Brasil não teve oportunidade nem tempo de consolidar suas estruturas sociais. Uma das conseqüências mais dramáticas criadas por essas contingências está na precariedade de nosso sistema político que, a duras penas, luta para construir uma democracia, mesmo sendo um dos países que apresenta o maior índice de desigualdade social. É compreensível, portanto, que a precariedade do regime político representativo haja sobrecarregado o Poder Judiciário de incumbências que, num sistema democrático bem ajustado, poderiam ser atendidas por outras instituições políticas.
16. A conseqüência mais óbvia das transformações políticas e culturais, não apenas brasileiras, mas de toda a civilização ocidental, foi a profunda transformação ocorrida no conceito de lei, se a compararmos com a lei pensada pelos revolucionários franceses e a lei atualmente existente, que administra o Estado contemporâneo. Numa síntese, sem dúvida redutora do sentido desse fenômeno histórico, pode-se dizer, com Castanheira Neves, que a lei funcionalizou-se, passando a ser um instrumento para finalidades que nada têm a ver com o sentido do Direito, enquanto busca da Justiça do caso concreto. Mas também tornou-se evidente que a crise da democracia representativa, somada a estes fatores as profundas transformações políticas, mas especialmente econômicas, ocorridas na segunda metade do século XX, determinaram que o juízes fossem obrigados a abandonar a ilusão da existência de uma "vontade da lei" que lhes caberia revelar, passando a produzir – naquela antevisão de Chiovenda – a "vontade da lei" pelos juízes concebida para cada caso concreto; ou seja, a conclusão desse processo histórico, colocou-nos ante um sistema arbitrário de decisionismo positivista radical, no qual, como dissera Chiovenda, aquilo que o juiz "afirma na sentença ser a vontade concreta da lei" é realmente a verdadeira vontade da lei.
Passamos a contar, conseqüentemente, com milhares de "vontades da lei" simultaneamente emitidas em todas as instâncias judiciárias, sentenças todas elas muito bem "explicadas" por seus prolatores que, todavia, impedidos pelo sistema de fundamentá-las – pela inexistência de discricionariedade que pudesse legitimar os juízos de razoabilidade – tornaram-se exemplos vivos do mais radical decisionismo normativista. O exercício da advocacia forense participa, afinal, da "sociedade do risco", de que fala Ulrich Beck, em vista da extraordinariamente rápida transformação a que está submetida a "vontade de lei", determinada pelas milhares de sentenças produzidas mensalmente por todas as instâncias judiciárias, entre as quais não será difícil encontrar uma dezena de julgados tidos como "idênticos" ao caso investigado, porém, muito provavelmente, contendo divergências entre si, quando não se oponham frontalmente uma às outras, nesse mesmo grupo de ações "idênticas". É claro que a "era da incerteza" atinge, afinal, em cheio esse elogiado instrumento, concebido pelos filósofos do Iluminismo, que é o direito processual, para ser o guardião da "segurança" da Era Moderna. A vida do advogado tornou-se o que Jon Elster indicou como "juízos salomônicos", para mostrar os reais limites da racionalidade judicial (Juicios salomónicos - las limitaciones de la racionalidad como principio de decisión, Godisa Editorial, Barcelona 2ª edição, 1995, original inglês, University of Cambridge, 1989). Esta é a circunstância paradoxal que obriga o advogado a um equilíbrio instável entre os princípios, zelosamente preservados da "jurisdição declaratória", e as novas realidades decorrentes do decisionismo positivista, liberto da exigência de fundamentação das sentenças que recomenda – mais do que recomenda – impõe que o advogado, ao receber o cliente, mantenha a natural atitude de prudência, evitando emitir opinião sobre o caso, antes de conhecê-lo suficientemente; mas, além disso, haverá de solicitar-lhe o prazo de alguns dias, indispensáveis para que ele se informe da mais recente "vontade da lei", registrada nos últimos dois meses, cuja busca é indispensável fazer nos sites dos tribunais, especialmente dos tribunais superiores. A jurisdição virtual, que já se encontra entre nós, nada tem a ver com a relação entre Direito e Justiça, com que sonhou a cultura da antigüidade clássica e ainda sonham – no discurso retórico – muitos juristas contemporâneos.
Qualquer pessoa perceberá que essa busca da "última vontade da lei" que o advogado fará, nos registros de jurisprudência, de pouco lhe valerá, sabido como é que o julgador – que adotará o mesmo procedimento – tendo formado uma compreensão do caso que o conduzirá a uma solução oposta às esperanças desse advogado, também encontrará, nos incontáveis acervos jurisprudenciais, a solução que irá confirmar seu entendimento. Sem intenção de fazer humor, porque o assunto é demasiadamente grave para a condição do advogado forense, poderíamos dizer que o sistema brasileiro tanto rodou, entre as contingências impostas por um sistema emperrado e obsoleto, que finalmente transformou-se em um sistema jurisprudencial, à semelhança do direito inglês. A "vontade da lei" é "descoberta" exclusivamente através dos registros jurisprudenciais. A doutrina que, seguidamente, ornamenta os acórdãos nada tem a ver com o thema decidendum, se não depois de despida de sua individualidade, de modo a ser inserida na seriação de casos "normatizáveis", porque integrantes de um grupo "homogeneizado". As coisas resolvem-se mesmo pela coleção de acórdãos indicada pelo julgador, às vezes somente pelas ementas, cuja identidade com o caso a ser julgado é, no mínimo, duvidosa, mesmo porque na natureza não existe a igualdade. Existe apenas analogias.
17. O que ficou dito até aqui o foi com a intenção de destacar o sentido desta homenagem. Calmon de Passos, viveu intensamente a vida forense, sem, contudo, abandonar a outra paixão de que jamais abdicou, sua amorosa dedicação ao magistério universitário. Foi um cultor do direito fiel a suas convicções, pelas quais sempre lutou bravamente. O que o faz singular, mais como pessoa humana do que propriamente como um profissional do Direito, é essa virtude especial que o manteve desperto, com o aguçado senso crítico que lhe permitiu ver e compreender nossa realidade, sem jamais poupar, seja por comodidade ou conveniência, os equívocos e erros cometidos pela doutrina e por nossa jurisprudência. Calmon de Passos merece ser saudado pela verticalidade ética de sua conduta, tanto ou mais do que como o jurista que nos legou importantes obras escritas. E, quando me limito a referir sua produção escrita, livros e ensaios, não posso esquecer as encantadoras lições produzidas pelas suas inesquecíveis palestras e conferências.
Ao preparar a redação deste texto, decidi revisitar alguns estudos escritos por Calmon. Dentre os que reli, encontrei este que transcrevo, elaborado em 1987, sob o título "Democracia, Participação e Processo": "Despe-se o processo de sua condição de meio para realização de direitos já formulados e transforma-se ele em instrumento de formulação e realização dos direitos. Misto de atividade criadora e aplicadora do direito ao mesmo tempo. Cuida-se, portanto, de um problema de ordem política, não de algo que encontrará solução no campo da dogmática jurídica. . . . Superação do mito da neutralidade do juiz e do seu apoliticismo, institucionalizando-se uma magistratura socialmente comprometida e socialmente controlada, mediadora confiável tanto para solução dos conflitos individuais como dos conflitos sociais que reclamem e comportem solução mediante um procedimento contraditório, em que a confrontação dos interesses gere as soluções normativas de compromisso e conciliação dos contrários . . . A tarefa é hoje política, ainda que pensada por juristas-processualistas..." (Participação e processo, obra que reúne as conferências relativas Congresso Internacional, realizado na Universidade de São Paulo, sob o Patrocínio do Instituto Brasileiro de Direito Processual, edição Editora Revista dos Tribunais, 1988, p. 95-96). Dou-me conta da lucidez de sua análise quando constato que a compreensão de Calmon continua sendo de absoluta atualidade. No fundo, tudo se reduz ao projeto da modernidade de separar o Direito (que haveria de ser científico) da Política, entregue aos empresários construtores do mundo moderno. O que a lucidez de Calmon percebeu, há mais de vinte anos, tem sido o tema da pauta constante do que tenho, hoje, pensado e escrito. A exegese perdeu inteiramente sentido. A correção de rumos de nossa jurisprudência – o que implica transformar-lhe a estrutura – é uma tarefa política, embora seu diagnóstico e os remédios que poderão salvá-la devam ser incumbências dos processualistas.
18. Com a insistência dos abnegados, fiéis a seus princípios, Calmon perseverou na crítica a nosso sistema judiciário, reprovando o critério de seleção e aperfeiçoamento dos juízes aplicado no Brasil que lhe pareceu um "defeito pernicioso", associado a um sistema de recursos "engendrado para fortalecer a posição dos tribunais, que tornam "os julgamentos de primeiro grau desmoralizados". Suas decisões não têm "nenhuma independência ou autoridade, em face de seus superiores, os eminentes desembargadores que integram os tribunais de apelação nos Estados e o juízes e tribunais regionais , na área da Justiça Federal e do Trabalho". "São os Tribunais que realizam os concursos para ingresso na carreira constituindo as comissões julgadoras (com maioria de membros dos tribunais) e definindo o conteúdo programático que entendem desejável. São eles que detêm o poder de investidura dos magistrados nos cargos e decidem sobre sua carreira, atendendo a critérios jamais revelados, mediante deliberação secreta, desmotivada e totalmente arbitrária, em que pese o mandamento constitucional no sentido da necessidade de motivação de todo e qualquer ato, inclusive administrativo".
19. A "desmoralização" dos julgamentos de primeira instância, operada por um escandaloso sistema recursal, associada à vigilante fiscalização, zelosamente exercida pelos tribunais, sobres os juízes hierarquicamente inferiores, exaspera o grau de corporativismo do Poder Judiciário, de tudo resultando – afirma Calmon –: "Os prejuízos para a advocacia, cada dia mais próxima de algo tão aleatório que se avizinha do exercício do jogo e da aposta" (Direito, poder, justiça e processo, Edição Revista Forense, 1999, nº 109-113).
20. Para encerrar esta breve e modesta homenagem, volto a indagar: por que nossas elites, compreendidas as elites políticas, empresariais e - principalmente – a prestigiada elite jurídica, não foram despertadas para essa realidade toda? Qual o mistério que as mantém alienadas?
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Por: Ovídio Baptista da Silva, Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
- Artigo publicado na Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil nº 28 - Jan/Fev de 2009.