quarta-feira, 29 de julho de 2009

Balança desequilibrada

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.No Brasil, cerca de dois terços da população brasileira não têm condições de pagar advogados. Isso significa, em muitas ocasiões, que os mais pobres forçosamente têm que abrir mão de direitos fundamentais, já que não contam com profissionais que possam fazer a sua defesa. Com a Constituição Federal de 1988, ficou expressamente prevista a criação das Defensorias Públicas, que seriam um instrumento de acesso à justiça utilizado pelos mais necessitados. Mas sua implantação e ampliação ainda caminham a passos lentos no país. As Defensorias Públicas ainda não existem em Goiás, Paraná e Santa Catarina. Em outros 18 estados não possuem estrutura suficiente para garantir sequer um representante por comarca, onde há juízes e promotores de plantão. Dentre estes, a situação é pior no Maranhão, em São Paulo e no Piauí, que não chegam atender 10% de seu território (veja tabela com as comarcas atendidas). Números do Ministério da Justiça, publicados no último Diagnóstico da Defensoria Pública, de 2006, mostram que, em média, os estados gastam 24,37% do orçamento do Judiciário com o Ministério Público e 3,33% com a Defensoria. “Percentual claramente insuficiente diante da constatação de que mais de 70% da população precisaria acessá-la”, conclui o estudo, apontando que além das famílias com baixa renda há aquelas com comprometimento de quase todo o orçamento com doenças ou educação. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que desenvolve um estudo sobre a relação entre acesso a justiça e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) em parceria com o Ministério da Justiça destaca que “em regra, os serviços são menos abrangentes nas unidades da Federação com os piores indicadores sociais”. Um indício de que a falta de acesso à Justiça não apenas é reflexo da desigualdade como colabora para que ela seja perpetuada. Em junho deste ano, um questionário foi enviado a todos os defensores públicos do país para dar início a um diagnóstico atualizado. O presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), André Luís Machado de Castro, acredita que haverá avanços em itens como criação de cargos e até na “interiorização”, mas ainda assim serão insuficientes. “Houve progresso, sim, mas ainda estamos muito longe de atender à obrigatoriedade constitucional. Além disso, o sistema judiciário como um todo cresce”, diz. Entre 2004 e 2006, por exemplo, o número absoluto de comarcas atendidas pela Defensoria Pública aumentou em 19,9%, mas a cobertura percentual diminuiu porque o crescimento de comarcas foi de 27,2%. O Secretário Nacional de Reforma do Judiciário, Rogério Favreto, em resposta à Fórum, enviou nota comunicando que não há prazo estabelecido para que os estados criem as Defensorias Públicas. “A competência para criação destas é do Executivo Estadual, que deve encaminhar projeto de lei criando a instituição. O trabalho do Ministério da Justiça tem sido o de dialogar com os estados, fomentando a criação da instituição nos moldes previstos na Constituição Federal”, disse. Segundo ele, como o alcance depende da criação de cargos em cada estado, o Ministério busca “modernização e aprimorar as estruturas”. As linhas gerais para criação e organização das Defensorias Públicas Estaduais, diferentemente da do Distrito Federal e da União, foram delegadas para competência de cada Unidade Federativa, com iniciativa do Governador do Estado condicionada a aprovação pela Assembleia Legislativa. No Paraná, o governo defende que existe Defensoria Pública, embora ela não seja reconhecida pelo Executivo Federal. O estado mantém um prédio que institui para defender um cidadão profissionais de outras áreas do governo. “A maioria das pessoas é atendida por estagiários que só pedem assinaturas de um advogado”, critica Solange Aparecida de Souza, presidente da Organização Jurídica de Apoio ao Cidadão, ONG que presta serviços jurídicos gratuitos. “Muitas pessoas com câncer só recebem remédios caros do governo depois de pedir judicialmente e, em geral, só quem tem advogado pede”, exemplifica. Uma das assistidas pela ONG, a auxiliar-administrativa de Curitiba Daiane Wercy, ficou surpresa ao saber que tinha direito a um advogado gratuitamente. “Faz três anos que procuro um advogado e já fui em todas as repartições que me indicaram. Nunca me falaram sobre Defensoria Pública”, diz. Com uma remuneração mensal de R$ 420, ela tenta buscar na Justiça o direito a pensão alimentícia da filha de 12 anos para complementar a renda. “Cheguei a pagar advogado, mas ele se mudou e não me avisou. Preciso muito do dinheiro para dar uma roupa e até uma comida melhor para ela”, conta. No terceiro estado sem Defensoria Pública, Goiás, o órgão foi criado por lei aprovada em 2005, mas ainda não funciona por falta de profissionais. O primeiro concurso público está previsto para este ano e o início do trabalho para 2010. Enquanto isto, o Conselho Nacional de Justiça solicitou ao Distrito Federal o empréstimo de 12 defensores que farão mutirões eventuais nas penitenciárias do estado. Em São Paulo, a Assembleia Legislativa recebeu em junho projeto do Executivo que abre concurso para contratar mais 100 defensores públicos e elevar o total para 500. O número ainda é baixo comparado com estados como o Rio de Janeiro, que tem Defensoria Pública desde 1954 – a mais antiga do país – e atualmente conta com 752 profissionais. Convênios Por força de lei, nos estados e comarcas onde não há Defensoria, o estado é obrigado a providenciar um advogado a qualquer pessoa, sobretudo aquela que estiver sob custódia (detida ou presa) em um prazo de 24 horas. A maioria dos estados mantém convênios com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou com faculdades de Direito, onde os professores aproveitam para dar trabalho aos estudantes em escritórios-modelo. É o caso de Santa Catarina, considerado o estado mais atrasado na implantação da Defensoria Pública. O governo estadual alega que a adoção dos convênios permite “maior capilaridade” por contar com profissionais em todas as cidades. Autora do livro Acesso à Justiça e Cidadania, Maria Aparecida Lucca Caovilla, que é professora da Universidade Chapecó, em Santa Catarina, e integrante do Movimento pela Criação da Defensoria Publica do estado, explica que, por mais bem intencionados que sejam estes professores e advogados, os direitos dos cidadãos ficam comprometidos. Ela explica que a OAB e as faculdades recebem uma ordem judicial para representar uma pessoa, normalmente um réu, quando já há um processo em curso. “A maior parte da população, no entanto, tem necessidades e direitos que nunca chegam a ser encaminhados à Justiça, pois as pessoas não sabem que a lei poderia beneficiá-las”, diz. Por conta dessa situação, a garantia de atuação de um defensor público nos processos criminais é das reivindicações que mais ganha destaque atualmente. Em um mutirão para rever a situação de diversos homens detidos em um Centro de Detenção Provisória em São Paulo, a defensora pública Franciane de Fátima Marques destacou um dos problemas mais sérios gerados pela falta de colegas suficientes. “Pelo menos 90% dos presos provisórios (aqueles que aguardam julgamento) de São Paulo já teriam direito a algum tipo de benefício concedido por lei. Porém, por não terem condições de contratar um advogado, estão esquecidos na cadeia”, afirmou. Segundo informações prestadas em junho pelo representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Erivaldo Ribeiro dos Santos, no seminário Sistema Carcerário Brasileiro que ocorreu na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos deputados, 43% dos presos brasileiros são provisórios. Eles deveriam aguardar a análise de seus casos por dias, mas por falta de apelações por liberdade há casos de esperas que chegam a oito anos. “Nosso sistema é mais acusador do que defensor”, concluiu Santos. Os dados explicam porque a expressão popular “rico não fica na cadeia” continua em voga. Se na imensa maioria dos casos - até 90%, na avaliação da defensora Franciane- é mesmo possível fazer algo, quem pode pagar um advogado quase sempre ganha a liberdade. Quem não pode e não conta com um defensor público acaba engrossando as estatísticas da população carcerária. De acordo com o decreto que regulamenta a criação e o funcionamento das defensorias, todas elas deveriam ter membros suficientes para dar plantão em penitenciárias. A ausência destes profissionais colabora diretamente com a superlotação nas cadeias e os problemas decorrentes. A constatação foi feita também pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, no fim do ano passado, embora essa não fosse sua intenção. Para combater as insinuações de que houve excesso de habeas-corpus para empresários e banqueiros presos em operações da Polícia Federal, o órgão máximo da Justiça havia divulgado que “um terço dos habeas-corpus concedidos pela casa beneficiavam pobres”. Com a constatação de que dois terços da população e mais de 90% dos presos são pobres – com renda inferior a três salários mínimos – ficou claro que a proporção de benefícios é completamente invertida. Ao perceber a distorção, Mendes declarou que não se concedia mais benefícios a pobres por falta de pedidos dos defensores públicos. Não só os casos urgentes Apesar do forte apelo do problema carcerário do país, segundo a Associação Nacional dos Defensores Públicos, 80% dos casos assistidos por membros dos órgãos existentes são da esfera cível, e não criminal. “Uma série de litígios da área de família, usucapião e defesa do consumidor chegam às defensorias”, destaca o presidente da Anadep. Em geral, as pessoas buscam soluções pelos mais diversos meios, inclusive em organizações que mantêm algum convênio com uma Defensoria. “Depois de resolvido [o problema, na Defensoria], eles indicam para os vizinhos e amigos que nos procuram”, conta. Outra forte aspiração dos defensores públicos, para além de remediar casos individuais, é de criar núcleos especializados nas áreas de maior demanda: família, direito do consumidor, meio ambiente, direitos da pessoa com deficiência, além de assistência à população carcerária e outras demandas, que variam entre os Estados. O papel desses Núcleos seria o de organizar diversas ações agrupadas por temática, estudando, inclusive, as formas de ajuizamento de ações coletivas e medidas extrajudiciais para solucionar esses problemas identificados como “difusos”. Apesar do quadro atual, o presidente da Anadep vê o futuro com otimismo. “Do ponto em que estamos, poucos esforços e pequenos investimentos podem trazer grandes avanços. Acredito que com a conscientização das pessoas e a busca por seus direitos poderemos equilibrar esta balança em alguns anos”, diz Castro.


Por Cinthia Rodrigues, Revista Fórum.

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