Os filósofos medievais estavam fascinados pelo espelho. De modo especial, interrogavam-se sobre a natureza das imagens que neles comparecem. Qual é seu ser ou então, seu não-ser? São corpos ou não corpos, substancias ou acidentes? Identificam-se com a cor, com a luz ou com mo sombra? São dotadas de movimento local? E como é possível o espelho acolher suas formas?
Certamente o ser das imagens deve ser muito especial, pois, se fossem simplesmente corpos ou substancias, como poderiam ocupar o espaço já ocupado pelo corpo que é o espelho? E se lugar delas fosse o espelho, deslocando-se o espelho, deveriam se deslocar com ele também as imagens.
Em primeiro lugar, a imagem não é uma substancia, mas um acidente, que não se encontra no espelho como em um lugar, mas como em um sujeito – quod est in speculo ut in subiecto – Estar em um sujeito é, para os filósofos medievais, o modo de ser do que é insubstancial, ou seja, não existe por si, mas em outra coisa – tendo em conta a proximidade de experiência amorosa e a imagem, não nos surpreende que ambos Dante e Cavalcanti, definam, no mesmo sentido, o amor como “acidente em substancia”.
Dessa natureza insubstancial derivam duas características de imagem. Não sendo substancia, ela não tem realidade contínua, n em se pode dizer que se mova, através de um movimento local. Alias, ela é gerada a cada instante de acordo com o movimento ou a presença de quem a completa: “Assim como a luz é criada cada vez de novo segundo a presença do iluminante, assim também dizemos acerca da imagem no espelho que ela é gerada toda vez segundo a imagem de quem olha”.
O ser da imagem é uma geração contínua – semper nova generatur – ser de geração e não ser de substancia, ela é criada a cada instante de novo, assim como acontece com os anjos que, segundo Talmud, cantam os louvores de Deus e imediatamente precipitam no nada.
A segunda característica da imagem consiste em não ser determinável segundo a característica da quantidade, em não ser propriamente uma forma ou uma imagem, mas antes a “espécie de uma imagem ou uma forma de uma forma” – species imaginis et formae – que em si não pode ser chamada nem longa nem larga, mas “tem apenas a espécie de longuidão e da largura”. As dimensões da imagem não são, pois, quantidades mensurais, mas apenas espécies, modo de ser e hábitos (habitus vel dispositiones). O fato de ser possível referir-se unicamente a um hábito ou a um ethos é o significado mais interessante da expressão “estar em um sujeito”. O que está em um sujeito tem a forma de uma espécie, de um uso, de um gesto. Nunca é uma coisa, mais sempre e apenas “uma espécie de coisa”.
O termo species, que significa “aparência”, “aspecto”, “visão” deriva de ma raiz que significa “olhar, ver”, e que se encontra também em speculum, espelho, spectrum, imagem, fantasma, perspicuus, exemplo, signo, spectaculum, espetáculo. Na terminologia filosófica, species é usado para traduzir o grego eidos (como genus, gênero, para traduzir genos); daí o sentido que o termo terá nas ciências da natureza (espécie animal ou vegetal), e na língua do comercio, onde o termo passará a significar “mercadorias” e, mais tarde, dinheiro (spèces).
A imagem é um ser cuja essência consiste em ser uma espécie, uma visibilidade ou uma aparência. Especial é o ser cuja essência coincide com seu dar-se a ver, com sua espécie.
O ser especial é absolutamente insubstancial. Ele não tem lugar próprio, mas acontece a um sujeito, e esta nele como um habitus ou modo de ser, assim como a imagem está no espelho.
A espécie de cada coisa é sua visibilidade, a sua pura inteligibilidade. Epecial é o ser que coincide com o fato de se tornar visível, com a própria revelação.
O espelho é o lugar em que descobrimos que temos uma imagem e, ao mesmo tempo, que ela pode ser separada de nós, que a nossa “espécie” ou imago não nos pertence. Entre a percepção da imagem e o reconhecer-se nela há um intervalo que os poetas medievais denominavam amor. O espelho de Narciso é, nesse sentido, a fonte de amor, a experiência inaudita e feroz, de que a imagem é e não é nossa imagem.
Quando eliminamos o intervalo, quando – mesmo que por um instante – nos reconhecermos sem nos termos desconhecido e amado na imagem, isso significa já não podermos amar, acreditar que sonos senhores da própria espécie, que coincidimos com ela. Ao prolongarmos indefinidamente o intervalo entre a percepção e o reconhecimento, a imagem é interiorizada como fantasma, e o amor recai na psicologia.
Os medievais chamavam a espécie de intentio, intenção. O termo designa a tensão interna (intus tensio) de cada ser que o impele a se fazer imagem, a se comunicar. A espécie não é, nesse sentido, nada mais que a tensão, que o amor que cada ser deseja a si mesmo, deseja perseverar no próprio ser, comunicar a si mesmo. Na imagem, ser e desejar, existência e esforço coincidem perfeitamente. Amar outro ser significa: desejar a sua espécie, ou seja, o desejo com que ele deseja preservar no seu ser. O ser especial é, nesse sentido, o ser comum ou genérico, e isso é algo como a imagem ou o rosto da humanidade.
A espécie não subdivide o gênero, mas o expõe. Nela, desejamos e sendo desejados, o ser se faz espécie, se torna visível. E ser especial não significa o individuo, identificado por esta ou aquela qualidade que lhe pertence de modo exclusivo. Significa, pelo contrário, ser qualquer um, a saber, um ser tal que é indiferente e genericamente cada uma de suas qualidades, que adere a elas sem deixar que nenhuma delas o identifique.
“O ser qualquer um é desejável” é uma tautologia.
“Especioso”, significa belo e, mais tarde, não verdadeiro, aparente. Espécie significa o que torna visível e, mais tarde, o principio de uma classificação e de uma equivalência. Causas espécies significa “assombrar, surpreender” (pejorativo); mas que indivíduos constituam uma espécie nos traz segurança.
Nada e mais instrutivo do que esse duplo significado do termo “espécie”. Ela é o que se oferece e o que se comunica ao olhar, o que se torna visível e, ao mesmo tempo, o que pode – e deve a qualquer custo – ser fixado em uma substancia e em uma diferença especifica para que possa constituir uma identidade.
Pessoa significa originariamente mascara, ou seja, algo que eminentemente especial. Para mostrar os sentidos dos processos teológicos, psicológicos e sociais, que revestem a pessoa, nada é melhor do que o fato dos teólogos cristãos terem recorrido a esse termo para traduzirem o grego hypostasis, ou seja, para ligarem a máscara a uma substancia (três pessoas em uma substancia). A pessoa é a captura da espécie e a sua vinculação a uma substancia com o objetivo de tornar possível sua identificação. Os documentos de identidade contem uma fotografia ou outro dispositivo de captura da espécie.
O especial deve ser reduzido em qualquer lugar ao pessoal e esse ao substancial. A transformação da espécie em principio de identidade e de classificação é o pecado original da nossa cultura, o seu dispositivo mais implacável. Só personalizamos algo – referindo-o a uma identidade – se sacrificarmos a sua especialidade. Especial é, assim um ser – um rosto, um gesto, um evento – que não se assemelha a nenhum se assemelha a todos os outros. O ser especial é delicioso, porque se oferece por excelência ao uso comum, mas não pode ser objeto de propriedade pessoal. DO pessoal, porém, não são possíveis nem uso e nem gozo, mais unicamente propriedade e ciúmes.
O ciumento confunde o especial com o pessoal, o bruto confunde o pessoal com o especial. A jeune fille é ciumenta de si mesma. A mulher valorosa brutaliza a si mesma.
O ser especial comunica apenas a própria comunicabilidade. Mas esta acaba separada de si mesma e constituída em uma esfera autônoma. O especial transforma-se em espetáculo. O espetáculo é a separação do ser genérico ou seja, a impossibilidade do amor e do triunfo do ciúmes.
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O ser especial em Profanações de Giorgio Agamben.